sábado, 13 de outubro de 2007

Texto de José Guilherme Bandeira

É claro que nem só da espuma dos dias se ocupa o leitor com propensão a
colunista.
Não!
Ele entra em contradição com a opinião publicada. O próprio colunista.
Encartado. Sério. Não um falseado. Espúrio. Como eu…
Mas lá está… a “Atlântico” não tem uma página de opinião de
“leitores” - ou de gente que compra a revista só mesmo pelas cores
catitas da capa e para irritar a larga maioria dos conhecidos que daí para a
frente lhe chamam “aquele sacana fascista” e que, eventual e
casuisticamente, lê realmente uma ou outra linha lá pelo meio, regra geral, a
banda desenhada dos dedos”. Não conheço ninguém nesta categoria. Lá está,
porque só me conheço a mim que leia esta revista. E eu sou um “leitor”.
Dos verdadeiros. Daqueles que dobram a parte superior da página quando se
deparam com mais uma tirada pungente do João Pereira Coutinho. Ou um acerbo
certeiro do Henrique Raposo. Para ficar por um par. Para reler mais tarde e
retirar aquele gostinho especial que só os predestinados propiciam.

Desta vez também dobrei a página. Infelizmente foi porque fique a espumar da
boca (não de “Raiva “- a dos corpúsculos de Negri; mas de “raiva” no
sentido de “grande cólera - diz-me o meu dicionário da “Porto
Editora”. E cá me atiro à liça. Comentar um comentador. Numa revista sem
secção de “Leitores” e só com um e-mail para uma edição “on-line”.

Vai ter que ser mesmo para aí…

Espumo eu, então, da recensão, da “Atlântico” de Agosto, ao
“canhânho” de Sam Harris, “O Fim Da Fé”. Se a crítica publicada,
oficial, é positiva, então a minha é negativa. Terrível. Jihadista.
Perdão, cruzadista. E, por tabela, leva também o crítico. O troar ouvido é
definitivamente de um canhão…
Enquanto afio a baioneta, afinal e estamos em “guerra”, palavras do
“cientista-filósofo” (Rir!!!) seguem os vitupérios; o desafio para o
duelo (ao pôr do sol, porque embora “fundamentalista”, não sou
destituído de todo o sentido estético) será objecto de missiva posterior.

De Dawkins, a Dennett, Harris e Stenger ou Sagan, todos com livros com títulos
bem “batidos”, de que é exemplo “Como a ciência demonstra que Deus não
existe” de Stenger. Estranho. Ignoram a inacessibilidade Kantiana, logo à
partida, a demonstrar a existência ou não de Deus. (Fazem-me aqui lembrar uma
luminária que num debate por alturas do referendo ao aborto nutria especial
caridade pelo “livre-arbítrio da Mulher”. Apelo daqui ao mestre que após
a resolução da 3.ª aporia - infelizmente apenas para metade da Humanidade
- se volte para as primeiras. Estou certo que serão solucionadas com idêntica
elegância.)
Bem, o vestígio de honestidade que me percorre ainda o corpo leva-me a conceder
que eu também.
Sou Católico. Não Pietista, como Kant.

No entanto, enquanto demonstram que Deus não existe, desconsideram à partida,
a possibilidade contrária. Um exemplo de abertura intelectual. E
imparcialidade.

Para ser minimamente sólido teria que prolongar-me por páginas e páginas. No
entanto, não estão já escritas “páginas e páginas”, mas “bibliotecas
e bibliotecas” por algumas das maiores mentes da História da Humanidade sobre
aquele que é, afinal, o sumo problema existencial…

No entanto, estou certo que nunca Dawkins, ou Harris ou nenhum dos outros, leu
páginas e páginas. Concedo que talvez parágrafos e parágrafos. Vá lá,
frases e frases… Entre si…
Pois então a tonalidade de irreverência e ignorância adolescente teria que
ter sido arredada da pena dos ditos.

Na interpelação de Terry Eagleton a Dawkins: “Quais são os seus pontos de
vista sobre as diferenças epistemológicas entre Aquino e Scoto? Leu Erigena
sobre a subjectividade, Rahner sobre a graça ou Moltman sobre a esperança?
Alguma vez ouviu falar deles?”

O nosso zoólogo tudo explica com o simples recurso epistemológico à sua
área. Nem um passo além. A religião é um mero “meme”. Informação
codificada em padrões cerebrais. Cultural. Um “vírus” que se reproduz de
geração em geração com o mero intento de se eternizar. Para isso
estimulando a desconfiança ao “estranho”, ao “outro”. No limite, o
ódio a “memes” competidores. Altruísmo para dentro, implacabilidade para
fora.
O provincianismo é sufocante.

Ou Sagan, que analisando a reflexão teológica de Aquino e a doutrina das
impossibilidades divinas, nota que Lobachevski e Bolyai criaram, em espaço
curvo, um triângulo com uma soma de ângulos internos diferente de 180º! Um
génio. Provavelmente com acne… Mas afinal um homem não fez aquilo que Deus
(ou o que a “Theologia” arguia que…) não podia? Não! O que a teologia
defende é que Deus, em espaço euclidiano, plano, que era o único conhecido
para os medievais, não pode criar tal triângulo. Porquê? Porque é absurdo.
Lembra a falácia do menino de escola contra a existência de um Deus
omnipotente; pode Ele criar uma pedra tão pesada que Ele próprio não a pode
levantar? Ou Sagan sabendo o que escrevia foi intelectualmente desonesto ou
não percebeu nada do argumento. Qualquer das alternativas é inquietante.

Harris, como surge na recensão, sustenta que a Fé obscurece a incerteza e que
o manifestamente falso tem a primazia sobre os factos.
A fazer eco da sentença de alguém que definia a Fé como crer em algo que
qualquer idiota sabe que é falso.

Repare-se que mesmo aqui qualquer reflexão séria não pode permanecer saturada
de uma tal linearidade. Desde o aforismo “Creio, porque é absurdo”,
presente em Kierkegaard; passando por Pascal “É o coração que sente Deus,
não a razão.”; até chegar àquele que é talvez o maior teólogo do séc.
XX, Karl Barth e à sua doutrina da total corrupção da natureza humana, como
tal incapaz de balbuciar o que for sobre o Absoluto (Barth escreveu que
qualquer “Prova” da existência de Deus é tão mais demoníaca quanto mais
perfeita for) dá-se eco a uma postura filosófica, o Fideísmo, que ainda hoje
é constitutivo do Cristianismo Protestante.

Como disse atrás isto não sucede na teologia Católica, na qual, desde Aquino,
na sua “Summa Theologica” estabelece que só o uso da razão natural, sem
ser necessário recorrer à Revelação, é suficiente para alcançar a
necessária postulação do Próprio Ser - Deus. Sendo que, rigorosamente,
tal disposição se pode traçar até S. Paulo.

Não obstante, o incómodo mais flagrante nesta afirmação é que está exangue
de um positivismo epistemológico. Definido por Ambrse Beirce como uma filosofia
que nega o nosso conhecimento do Real e afirma a nossa ignorância do aparente.
Limitando o alcance do conhecimento humano aos fenómenos dos quais temos
percepções sensoriais directas. Comte, o seu grande expoente, não acreditava
em átomos, ridicularizava a descoberta de Neptuno ( “pseudo-descoberta que
não tem interesse para lá dos habitantes de Urano”), pensava não haver
maneira de avaliar a composição química das estrelas (é feito por análise
espectral). Tudo isto levou a um efeito pernicioso histórico sobre o
desenvolvimento da ciência na zona globo sobre a qual se focalizou (bacia do
Mediterrâneo).

Uma teoria científica não é meramente positivista. Instrumentalista. O
positivismo segundo o seu próprio critério, que só conjecturas que descrevem
ou prevêem observações têm significado, é sem sentido.
Uma teoria científica sendo essencialmente explicativa (porquê e como é que
algo acontece assim e não de outra maneira) também prevê, verdade. Mas tais
previsões são muitas vezes chocantes para o senso comum, para a nossa
experiência quotidiana. Pensem na sentença einsteiniana de que um corpo em
velocidade arbitrariamente próxima da luz se contrai até espessura zero, a
sua massa aumenta sem limite e o tempo é dilatado até parar. Qual é a
experiência quotidiana que é paralela a isto? É uma extrapolação
injustificada, então? Não, porque é requerido pela consistência da nossa
melhor teoria científica para corpos em movimento, a Relatividade Restrita.
Qualquer teoria científica emprega um uso de “fé”, de vontade de a testar,
mesmo caso tenha consequências contra-intuitivas, e tirar proveito dela.
Pode inclusive prever que não pode prever, remetendo-nos para um ambiente
completamente estranho á nossa experiência ( e logo a qualquer “facto”)
como sucede no centro de buracos negros, no Big Bang e no Big Crunch.
A postura que Harris expõe é castradora do desenvolvimento científico pois
não permitiria, se levada às suas consequência lógicas, testar e estender
as nossas melhores teorias científicas. (David Deutsch, “The Fabric of
Reality”)

Mais, o iluminado Harris quando escreve “…enquanto se aceitar que uma pessoa
acredite…”, mas…realmente estou a ler isto numa revista conservadora?! A
cedência a tendências de engenharia social “top-down” , a aversão à
existência a formas de vida descentralizadas e a “parcelas” de vida que se
estendem para lá do emprego ou de outros constituintes oficiais, como a
família e a religião e que se tornam alguns dos maiores pólos de
realização pessoal, é nada mais que o prenúncio do “evaporar da liberdade
pessoal”. Não por acaso as autocracias nutrem particular aversão pelos
“tempos livres”, que naturalmente escapam à sua obsessão controladora. E
por estas formas de organização social espontânea. Não por acaso a
religião era perseguida ou controlada na URSS, no III Reich, na China
Maoísta… e o Cristianismo foi substituído no seguimento da insanidade da
Revolução Francesa pelo culto do Ser Supremo (Deísta). Não por acaso,
Rosseau e o seu mito do “Bom Selvagem” levou a Marat e Robespierre. (quanto
a isto, natural vs. cultura, franqueza ou genuinidade vs. condicionamento, que
era, enfim a noção rousseniana de perversão do mundo civilizado, não vale a
pena mencionar quantas vezes já foi desmitificado. O Homem não é naturalmente
Bom, sendo corrompido pela Sociedade. Estranhamente esta visão surgirá,
mutada, mais abaixo!).

Já agora, não sei se da lavra do responsável pela recensão, surge uma
alocução ao senso-comum. E, enfim, se a Religião não lhe é uma
contradição. Digo-lhe que, sinceramente, espero bem que sim! Não por acaso,
no prefácio d’”Os Problemas da Filosofia” de Bertrand Russel é escrito que
a filosofia é não em pequena parte a confrontação do senso comum com o bom
senso. Deutsch e Paul Davies escrevem que as melhores teorias científicas não
são só empiricamente mais fiáveis, mas fazem muito mais sentido que o
“senso comum”. Um exemplo é o fluxo temporal. O “senso comum” sustenta
que “o tempo flui” ou “nós nos movemos no tempo”. Claramente
contraditórias. Mas nada disto faz sentido. O tempo não flui. O espaço-tempo
é tido como um bloco sólido, sem fluxo ou movimento. É por isso que o
Livre-Arbítrio, na perspectiva da ciência moderna, só é ontologicamente
viável num Multiverso, ou seja, numa interpretação da multiplicidade dos
mundos.
O senso-comum supõe que a Terra é quadrada, que o Sol se movimenta em torno da
Terra e que as constipações são causadas pelo frio!

Há outro deslize que não posso deixar passar em branco. O de que a Fé só
surge quando se subtrai a racionalidade, a coerência interna, a civilidade e a
franqueza. A referência à civilidade e à franqueza não passam de uma
provocação. Supõe-se que um teísta é embrutecido e dissimulado. Desumano.
Valerá a pena, enfrentar os rigores de ter que repetir, até à náusea, que a
habitual consideração de um “Humanismo”, na linha de um Mário Soares,
não passa de Marxismo, sob uma máscara mais benévola? Bergson denunciou a
necessária distinção entre um Humanismo Aberto, por a sua essência repousar
na conexão entre o Homem, enquanto elemento central da criação, e o Absoluto;
e um Humanismo fechado. Ou, paralelamente, a destrinça Existencialismo Aberto
ou Fechado. Um representante desta última corrente era Sartre. Estou certo que
ninguém aqui cantou louvores ao passeio dos tanques soviéticos em Praga. (Ou
chamou “canalhas” a todos “os de direita”.)

Quanto à racionalidade e coerência interna…
Qualquer teoria científica tem que cumprir dois pressupostos. Ser logicamente
consistente e estar de acordo com os dados experimentais (isto foi relembrado
pelo Paulo Tunhas há um punhado de meses atrás). Também tem que ser
falsificável, ou seja, não ser meramente explicativa, mas “correr
riscos”, ou seja, preditiva. Por isso uma teoria, por absurdo, do Universo
construída a partir da altura das pirâmides não é científica.
A Pedra da Roseta (desde a Antiguidade Clássica, nomeadamente os Pitagóricos,
até exemplos modernos como Einstein e Hawking, p. ex.) é saber se a
consistência matemática aliada à necessidade de correlação à quantidade
imensa de dados empíricos disponíveis requer uma solução única. O conjunto
de soluções seria singular. Ou seja, a restrição a uma só conjectura,
nomeadamente o Universo actual. Isto constituiria o Universo - que
compreenderia todas as histórias fisicamente possíveis; o que reforçaria o
seu estatuto de singularidade, pois o que mais poderia ser real? - como
Necessário. Panteísmo?! Não! Panenteísmo. Pois a Imanência só pode
decorrer da Transcendência.
A meditação teológica é análoga à científica. Decorre da consistência
lógica e do acordo às fontes Reveladas. A consistência é de natureza
filosófica, por ex., um “milagre” não pode ser uma violação das leis
naturais ou seguir-se-ia a crítica de Hume; a destrinça fina entre
“tempus”, “aevum” e “aeternitas” implica uma subtileza necessária
em considerandos sobre a Liberdade Divina; a tomada em consideração da total
profundidade filosófica de conceitos como “essência”, “existência”,
“ser”, “ente”, “acto”, “potência”, leva a que, por exemplo,
Deus, sendo “O Ser” nunca pode deixar ou começar a ser, logo não
“existe”, ou seja, Deus é, mas não existe; Deus não é ente, mas o
próprio Ser pelo qual todos os entes existem; Deus é o Existente Subsistente
no qual a essência se confunde com a Existência, ou seja, é Aquele para O
qual a essência é existir; Deus é acto puro de ser, completa e
permanentemente actualizado, sem sombra de passividade, ou seja, em Deus não
há vestígio de “potência”…

Isto foi um curto intróito, até porque os interessados facilmente encontrarão
fontes de muito maior talento do que eu, que lhes poderão fornecer um retracto
mais global da riqueza infindável que é, afinal, reafirmo, o principal
problema existencial com o qual o Homem se debate.

Billot chamou a atenção para a necessidade de discernir entre adultos de idade
e de razão. Não quero com isto significar que todos os ateus ou agnósticos
são débeis mentais. Era ridículo. Mas não menos que a invectiva de Harris
sobre a Racionalidade e a Fé.

Quanto à “fonte de violência mais prolífica da História”, os mortos
pululam em lados sortidos. As duas grandes doutrinas totalitárias do sé. XX
eram militantemente ateias (na verdade, o Marxismo parece-me um crasso
Panteísmo, mas indubitavelmente anti-cristão).
A própria Inquisição tinha uma matriz eminentemente revolucionária, logo
materialista, se se quiser, ateia. Instrumento de combate inter-classissista
(nobreza vs. cristãos-novos).

E quanto aos malefícios civilizacionais da religião?

A concepção hodierna de Leis da Natureza teve a sua matriz no Ocidente,
derivada do monoteísmo judaico-cristão, facto notado por Alfred Whitehead. A
fé em regularidades naturais só pôde sobrevir do conceito de uma Divindade
Criadora, Una, Conservadora (no sentido de conservação na existência dos
contingentes e não no político), Racional e Eminentemente Bondosa.

O Livre-Arbítrio só passou a ser considerado doutrinalmente no “caldo”
sociológico da Cristandade. Só aí noções clássicas de “fattum”
estavam definitivamente ultrapassadas. Só aí se reconhece o “fórum
íntimo”, o espírito que “constitui a fulcralidade decisiva do juízo
livre e responsável do ser humano” (ver ensaio de Ramalho Eanes na “Nova
Cidadania” de Abril/Junho).

O próprio conceito de lei e direito Natural, tão brilhantemente usado por
Henrique Raposo como charneira da ética política conservadora, é esta a
exegese que lhe faço, é derivada da natureza racional do Homem antes de todo
o acto positivo de um legislador. Provém, historicamente, com força real se
se for crente, metaforicamente caso contrário, de Deus, como supremo
legislador de toda a ética criada. É então lei eterna que advém do acto de
sabedoria e da vontade criadora e ordenadora de Deus.

Penúltimo parágrafo para chamar a atenção que grande parte da tese é
desbaratada pelo curto artigo de André Azevedo Alves, 17 páginas atrás.
Último parágrafo para relevar que aguardo impacientemente que o livro de Frank
Tipler, que está em vésperas de ser publicado por terras “tugas”, também
ele seja objecto de recensão. Positiva, já agora!

Um Post-Scriptum para comunicar à malta da Atlântico, e depois da aziaga
mensagem acima, que continuem o bom trabalho a chamar a atenção que há
alternativas à ideologia marxista e derivadas. Pra lá do folclore
bloco-esquerdista, do cristalizado PCP ou do tele-ponto socialista subsiste
algo, nomeadamente o bom senso.

Um abraço!

José Guilherme Bandeira

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