domingo, 9 de setembro de 2007

LOPARIC - O PROBLEMA FUNDAMENTAL DA SEMÂNTICA JURÍDICA DE KANT

1
O PROBLEMA FUNDAMENTAL DA SEMÂNTICA JURÍDICA DE
KANT

Zeljko Loparic

Unicamp/PUCSP/PUCRS

1. O conceito de filosofia prática do Kant tardio
Kant define o filósofo como “legislador em nome da razão humana” (KrV, B 867).
Essa legislação tem dois objetos, a natureza e a liberdade, e contém, por conseguinte, tanto
as leis da natureza (leis naturais) como as da liberdade (leis morais). As primeiras
determinam a priori o que é e constituem o sistema da natureza; as segundas, o que deve
ser e compõem o sistema da liberdade.1 A filosofia teórica ou especulativa encarrega-se das
primeiras; a prática, das segundas.
Nos escritos de Kant tardio, a filosofia prática é divida em “metafísica dos
costumes” e “antropologia moral” (1797a, p. 12). Da primeira parte, constam princípios a
priori que dispõem sobre a “liberdade tanto no uso externo quanto interno do arbítrio”.2 Por
isso, ela é também chamada de “antroponomia”.3 A segunda parte, a antropologia moral,
consiste no estudo das condições subjetivas, pertencentes à natureza humana, quer
favoráveis quer contrárias à execução das leis da razão prática (1797a, p. 12).
Essa distinção é uma novidade em relação à primeira Crítica. Nesta obra, Kant opõe
a filosofia prática, em particular a moral pura — que trata de princípios “que determinam e
tornam necessários a priori o fazer e o deixar de fazer” — à antropologia, concebida como
um teoria empírica de caráter científico, ao afirmar que “a metafísica dos costumes é
1 Cf. Crítica da razão pura, B 869 e Princípios metafísicos da doutrina do direito, 1797a, p. 13. Por razões
que não cabe explicitar aqui, no presente trabalho estou seguindo o texto original dessa última obra na edição
de Weischedel.
2 Kant 1797b, pp. 7 e 14n. Do ponto de vista da origem da obrigatoriedade, a legislação moral é dividida em
jurídica e ética. Na primeira, a origem da obrigatoriedade é a coerção externa; na segunda, a coerção interna.
Segue-se daí que a legislação jurídica concerne tão-somente ao uso externo, enquanto a ética se aplica tanto
ao uso interno quanto ao externo (ações internas e externas do arbítrio, ibid., p. 13).
3 Kant 1797b, p. 47. Os atos do livre-arbítrio podem ser considerados do ponto de vista formal ou do ponto de
vista dos seus objetivos. De acordo com isso, a metafísica dos costumes se divide em doutrina do direito e
doutrina da virtude ou ética. A primeira concerne apenas ao “aspecto formal [ das Förmliche] do livre-arbítrio
a ser cerceado pelas leis da liberdade na sua relação externa” (1797b, p. III). A ética, por outro lado, “oferece
ainda a matéria (um objeto do livre-arbítrio), um fim da razão prática“ ( ibid., p. 4).
2
propriamente a moral pura, na qual nenhuma antropologia (nenhuma condição empírica) é
colocada como fundamento” (KrV, B 869 -70). Essa tese é mantida em Metafísica dos
costumes (1797). Entretanto, aqui, o problema da fundamentação e da validade das leis a
priori da doutrina do direito e da virtude é formulado de acordo com os resultados obtidos
em Crítica da razão prática (1788), passando a exigir a demonstração da aplicabilidade
imanente das leis práticas, isto é, da possibilidade de sua vigência no domínio das ações
efetivamente executáveis pelo agente humano livre.4 Essa mudança de enfoque reflete-se na
observação de Kant de que, “embora a metafísica dos costumes não possa ser
fundamentada na antropologia, contudo, ela pode ser aplicada a esta” (1797a, p. 11). Uma
das principais inovações da Metafísica dos costumes, inspirada na segunda Crítica, é
precisamente a de acrescentar ao domínio de objetos possíveis, especificado pela primeira
Crítica, o domínio de ações executáveis livremente, abrindo o caminho para a elaboração
de uma teoria a priori de aplicação dos conceitos e leis da metafísica dos costumes nesse
último domínio, isto é, para uma semântica a priori como parte da filosofia prática de Kant.
Essa é uma tarefa imprescindível. Kant escreve:
Mas do mesmo modo que hão de existir, numa metafísica da natureza, também princípios
de aplicação [Prinzipien der Anwendung] daquelas proposições universais supremas sobre
uma natureza em geral aos objetos da experiência, uma metafísica dos costumes tampouco
poderá permitir que faltem esses mesmos princípios, de modo que teremos de tomar como
objeto a natureza particular do homem, que é conhecida somente pela experiência, a fim de
mostrar nela as conseqüências dos princípios morais universais. (1797a, p. 11)
Em outras palavras, a constituição de uma metafísica dos costumes, tal como
proposta em Princípios metafísicos da doutrina do direito, implica, como subtarefa
necessária, a elaboração dos princípios de aplicação das proposições fundamentais da
metafísica dos costumes no domínio de ações humanas. Essa incumbência é concebida, por
Kant, em exato paralelo com a tarefa, executada em Princípios metafísicos da ciência da
natureza, em 1786, de fornecer regras para determinar “a realidade objetiva, isto é,
4 Na filosofia prática de Kant, o conceito de ato de arbítrio desempenha a mesma função que o conceito de
objeto na “ontologia” ou filosofia teórica: assim como esta última começa pela divisão de objetos em “algos”
e “nadas” ( Etwas und Nichts), assim também a filosofia prática inicia-se pela distinção entre atos do livrearbítrio
conformes e não-conformes às leis da liberdade (1797a, p. 14n).
3
significado e verdade” dos conceitos e das proposições fundamentais da metafísica da
natureza (Kant 1786, p. XXIII). Desta maneira, foi prestado um serviço “excelente e
indispensável” à essa metafísica, na medida em que foram providenciados “exemplos
(casos in concreto) que realizam os conceitos e os teoremas desta última”, is to é, “atribuem
sentido e significação [Sinn und Bedeutung] a meras formas de pensamento” ( ibid.).
Esse paralelo não elimina, mas sublinha uma diferença significativa entre a teoria
kantiana do “sentido e significado” dos conceitos a priori naturais e morais: enquanto os
primeiros são interpretados sobre os objetos da experiência, os segundos são referidos a
ações exeqüíveis livremente, objeto de estudo da antropologia moral ou pragmática. Em
oposição à antropologia “fisiológica”, isto é, à antropologia c omo parte da ciência da
natureza, “que pesquisa aquilo que a natureza faz do homem”, a pragmática estuda “aquilo
que ele, enquanto ser que age livremente, faz de si mesmo ou pode e deve fazer” (1798b, p.
IV).5
2. A ordem dos problemas na doutrina do direito
O objetivo último total — e não o inicial e apenas parcial — da doutrina do direito,
elaborada nos limites da mera razão, é o estabelecimento da paz universal e permanente.
Por que a paz perpétua? Porque a regulamentação racional da vida social exige que seja
garantido, de maneira segura, o que é meu e o que é seu, e, numa multidão de seres
humanos vizinhos uns dos outros, somente o estado de paz, assegurado pelas leis, oferece
tal garantia. Bem entendido, trata-se de leis jurídicas a priori, reunidas numa constituição
civil, de acordo com o ideal “de uma vinculação dos homens sob leis públicas em geral”
(1797a, p. 235).
A solução do problema da paz perpétua, formulada em termos de uma doutrina do
direito, pressupõe, portanto, a solução de problemas relativos à posse privada, em
particular, o problema de saber se e como é possível a razão legitimar que algo seja meu.
Não parece ser problemático afirmar a priori que algo que estiver em minha posse física —
algo de que sou detentor — possa ser, também, legítima e mesmo legalmente, meu, pois
tudo faz pensar que a negação dessa possibilidade equivale à supressão pura e simples do
uso externo do livre-arbítrio. Muito mais difícil se afigura justificar, unicamente com
5 Salvo indicação do contrário, os itálicos nas citações de Kant são os do original.
4
fundamento na razão pura prática, que algo seja meu mesmo sem estar em minha posse
física. Esse modo de ter algo como meu é chamado por Kant de “meu em termos de mero
direito” ( bloss-rechtlich) ou “meu inteligível” ( intelligibel), expressões que designam um
conceito básico da razão prática. A significação objetiva prática desse conceito deve ser
assegurada, visto que ele é usado nos juízos do tipo: “Este objeto externo é meu”, que
enunciam os primeiros atos legislativos do direito natural kantiano. Quando faço tal
declaração, eu entendo por “meu ex terno” algo tal que “a perturbação do meu uso desse
algo seria uma lesão, mesmo que eu não esteja em sua posse [física] (não detenha esse
objeto)” (1797a, p. 61; cf. p. 58). Aqui temos um ato de legislação, diz Kant, por meio do
qual “é imposta a todos uma obrigação que eles não teriam, a de se absterem do uso desse
mesmo objeto” (1797a, p. 69). Kant reafirma o mesmo ponto ao dizer: “Quando declaro
(por meio de palavras ou pela ação) que quero que algo externo deva ser meu, obrigo todos
os outros a se absterem [do uso] do objeto do meu arbítrio: essa é uma obrigação que
ninguém teria sem esse meu ato jurídico” (p. 72). Tal declaração inclui uma presunção à
legitimidade da posse, uma prerrogativa do direito (p. 75), que impõe a todos um dever de
direito (Rechtspflicht), previamente à existência de leis positivas que pudessem garantir a
sua legalidade.
Por não poder ser derivado do conceito de uso externo da liberdade (do livrearbítrio),
o enunciado dessa presunção é sintético; e por pretender ser universalmente válido
e necessário, ele é a priori. Daí surge a “tarefa para a razão de mostrar que um tal juízo [a
priori], que amplia [a posse] além do conceito de posse empírica, é possível” (p. 64). Kant
a formula da seguinte maneira: “Como é possível um juízo sintético a priori do direito?”,
no qual ocorre o termo “meu” na acepção de “meu em termos de direito natural” (p. 63).
A dedução da possibilidade de juízos desse tipo é condição primeira para tratar do
problema da possibilidade de todos os outros juízos do direito natural, tanto privado quanto
público ou civil, constitutivos da doutrina kantiana do direito, elaborada nos limites da
mera razão e baseada tão-somente em princípios a priori da razão prática com o fim último
de garantir a paz perpétua.6 Além disso, a tarefa de assegurar a possibilidade desses juízos
6 Na filosofia prática do Kant tardio (cf. Kant 1795 e, sobretudo, Kant 1798a), o que garante a paz perpétua
não é a natureza ou a providência, tal como em textos anteriores (cf. Kant 1784), mas a aceitação, por parte do
gênero humano — aceitação sensificada pelo entusiasmo diante dos progressos em direção da constituição
republicana, realizados na época de Kant — do dever moral-jurídico de viver em paz.
5
antecede a de decidir se as pretensões de direito que eles expressam são válidas ou não. Os
juízos do tipo “Este objeto externo é meu” podem, portanto, ser considerados como básicos
na doutrina kantiana do direito, e a tarefa de mostrar que esses juízos são possíveis, o
problema fundamental desta doutrina.
Mostrar que um juízo sintético qualquer a priori é possível (que pode ser
objetivamente válido ou inválido) significa, segundo Kant, explicitar as condições nas quais
ele pode ser aplicado num domínio de dados sensíveis.7 Da mesma forma, um conceito a
priori é dito possível se o seu referente e o seu significado puderem ser sensificados dessa
mesma maneira. Juízos e conceitos a priori possíveis são ditos terem realidade objetiva,
teórica, se eles forem teóricos, e prática, se forem práticos. A possibilidade ou realidade
objetiva8 dos primeiros é assegurada pela dabilidade de objetos;9 a dos segundos, pela
exeqüibilidade de ações.10 A dabilidade é assunto da teoria kantiana da experiência
possível; a exeqüibilidade, da antropologia moral ou pragmática.
De acordo com a interpretação que expôs em vários trabalhos anteriores, a
explicitação das condições da validade objetiva de juízos e conceitos a priori faz parte da
semântica a priori desses juízos. Portanto, o problema da possibilidade dos juízos a priori
básicos do direito é o problema fundamental da semântica jurídica de Kant.11
De acordo com a primeira Crítica, a “tarefa geral” da filosofia transcen dental é o
problema da possibilidade dos juízos sintéticos a priori teóricos (KrV, B 73). As
observações que acabo de fazer permitem concluir que, ao desenvolver o projeto de
filosofia transcendental, Kant tardio estendeu esse problema para abranger, além de juízos a
priori teóricos, todos os outros juízos sintéticos a priori, de modo que a tarefa generalizada
da filosofia transcendental passou a ser a seguinte: como são possíveis juízos sintéticos a
7 Todo juízo empírico é por definição possível.
8 Aqui, “realidade” si gnifica “conteúdo”, de modo que a expressão “realidade objetiva” é sinônimo de
“conteúdo objetivo”, isto é, sensível. A realidade objetiva pode ser teórica (conteúdos acessíveis no domínio
de objetos da experiência possível) ou prática (ações exeqüíveis pelo agente humano livre). A realidade
objetiva nem sempre é efetiva (wirklich), de modo que podemos distinguir entre a realidade objetiva e a
efetividade de um conceito ou juízo. Em contextos de prova, essa distinção desempenha um papel essencial.
9 A fim de que um conceito ou um outro “conhecimento” teórico seja possível, não basta que ele seja
logicamente consistente. Ele tem de ter, ainda, a “realidade objetiva”, isto é, “deve referir -se a um objeto
qualquer e ter nele sentido e significado”. Para tanto, “o objeto tem de poder ser dado de algum modo”, isto é,
ser dável (dabile) no domínio de experiência possível (KrV, B 194).
10 Sobre a sinonímia entre possibilidade prática, realidade objetiva prática e exeqüibilidade, cf., por exemplo,
Kant 1793a, pp. 432, 436, 467; 1795, pp. 36, 69 e 91; e 1797b, pp. 46-7.
6
priori em geral? A resposta a essa pergunta visa, ainda, um outro objetivo: fundamentar os
procedimentos de decisão para esses juízos, isto é, os procedimentos pelos quais é possível
determinar se eles são válidos ou não. Em certos casos, por exemplo, no caso de juízos
teóricos e morais, esses procedimentos fornecem provas; em outros — tal como ocorre com
os juízos estéticos —, decisões fundamentadas tão-somente em certas estratégias de
argumentação reflexiva.12
3. A definição do conceito de ação externa restritiva legítima
Visto que o juízo sintético a priori em que enuncio que um objeto externo é meu
“em termos do direito natural” é um ato unilateral meu, pelo qual eu imponho uma
obrigação ou dever a todos e, portanto, limito a liberdade externa de todos, torna-se
necessário determinar, também a priori, as condições em que atos legisladores desse tipo
podem ser justificados. Em outras palavras, o estudo semântico dos juízos básicos do
direito exige que seja esclarecido o conceito de ação externa restritiva legítima. Kant se
dedica a essa tarefa já na Introdução de Princípios metafísicos da doutrina do direito,
primeira parte de Metafísica dos costumes, deixando claro que se trata de uma análise
preliminar ao estudo do problema central que, conforme acabamos de ver, é o da
possibilidade dos juízos que enunciam os atos de tomada de posse inteligível.
Kant define o conceito de ação externa restritiva legítima em termos de condições
que a razão pura prática impõe às relações interpessoais externas práticas entre seres
humanos. Essas condições fazem parte da legislação externa da razão prática, que é o
objeto de estudo da ciência do direito. Nesse contexto, os seres humanos são considerados
agentes dotados de livres-arbítrios. O arbítrio é a capacidade de agir ou de deixar de agir
segundo o nosso bel-prazer, conectada com a consciência da capacidade de executarmos
ações que produzem objetos ou modificações em objetos. Um arbítrio é livre se puder ser
determinado pelas leis da razão pura, em particular, pela lei moral (1797a, p. 5). O conceito
de direito pressuposto pela legislação externa elaborada pela doutrina kantiana do direito é,
portanto, um conceito moral, sem que isso implique que as leis do direito sejam, elas
próprias, leis morais.
11 Em Kant, a solução do problema semântico de possibilidade é condição para a solução do problema de
decidibilidade ou de demonstrabilidade (cf. Loparic 2002, cap. 1).
12 Essas teses foram expostas com mais detalhes e defendidas em Loparic 1999 e 2002.
7
Tais relações entre pessoas dotadas de arbítrios livres são estudadas de três pontos
de vista. Primeiro, na medida em que elas são afetadas pelas ações dos seres humanos que,
“enquanto facta”, isto é, enquanto feitos humanos livres, “podem ter influência (imediata
ou mediata), umas sobre as outras”. Por exemplo, o ato pelo qual decla ro ser meu um
objeto externo influencia as ações dos outros no sentido de lhes impor a abstenção do uso
desse objeto.13 Segundo, trata-se tão-somente das relações mútuas entre arbítrios
(capacidades de agir livremente sobre o que está fora de mim), não de relações entre o
arbítrio de um e os desejos ou as necessidades dos outros. Terceiro, a matéria, isto é, os fins
perseguidos pelos arbítrios livres, não é levada em conta, mas apenas a forma da relação
entre eles, ou seja, a condição de “a ação de um dos do is se deixar unir com a liberdade do
outro segundo uma lei universal” (AB 33). 14
Isso posto, Kant define o direito (das Recht) como “o conjunto de condições sob as
quais o arbítrio de um pode ser conciliado com o do outro segundo uma lei universal de
liberdade” (1797a, pp. 32 -3).15 A ciência do direito é “o conhecimento sistemático” dessas
condições (p. 31). Assim concebido, o direito trata de princípios fundamentais da legislação
externa da razão prática que garantem direitos e deveres no uso externo da liberdade,
impondo restrições sobre este uso.
A doutrina jurídica é fundamentada no “critério universal” pelo qual é possível
reconhecer se uma ação que impõe restrições ao livre-arbítrio de outros é legítima (recht)
ou não-legítima (unrecht).16 Esse critério é explicitado por Kant na forma do seguinte
“princípio universal do direito”: “Uma ação é legítima [ recht], se ela ou a sua máxima
13 Kant está retomando aqui, no contexto da teoria do direito, a sua doutrina do antagonismo natural entre
agentes humanos livres, formulada anteriormente à Metafísica dos costumes, por exemplo, em Kant 1784,
proposição 4.
14 O conceito de “ação legítima”, buscado por Kant, não é, portanto, um conceito a priori inteiramente
abstrato, pois ele se refere às ações enquanto facta antropológicos do tipo explicitado. Mas ele, tampouco, é
apenas a posteriori, pois se refere às ações livres, o conceito de liberdade sendo aquele que é provado
praticamente real pela lei moral. Trata-se de um conceito misto, que possui notas a priori e a posteriori, tal
como são certos conceitos teóricos, por exemplo, o conceito de mudança (ou movimento). Na segunda edição
da primeira Crítica, Kant escreve: “Dos conhecimentos a priori denominam-se puros aqueles aos quais nada
de empírico está mesclado. Assim, por exemplo, a proposição: cada mudança tem sua causa é uma proposição
a priori, só que não pura, pois mudança é um conceito que só pode ser tirado da experiência” (KrV, B 3).
15 Uma definição semelhante do direito encontra-se em Kant 1793b, p. 234. Contudo, nesse texto ainda não
estão enunciados nem o princípio de coerção mútua universal nem o postulado do direito (ver a seguir).
16 Traduzo a expressão kantiana “rechte Handlung” por “ação legítima” e não por “ação justa”, ou “ação
legal”, para deixar claro que a legitimidade de uma ação é um conceito de legalidade derivado diretamente
dos princípios fundamentais da razão prática, no estado de natureza, previamente à elaboração de leis públicas
positivas.
8
permitir que a liberdade do arbítrio de cada um possa coexistir com a liberdade de todos os
outros, segundo uma lei universal” (p. 34; itálicos meus). Esse princípio, também chamado
de “axioma do direito” (p. 63), oferece, de fato, a definição da ação externa restritiva
legítima em termos de uma propriedade formal de sua máxima, a saber, pela
compatibilidade dessa máxima com as máximas de ações externas de todos os outros
agentes livres, de acordo com uma lei universal não especificada.17 Trata-se de uma
definição apenas nominal, obtida pela análise da idéia da ação livre externa, que permite
seja feita uma distinção conceitual entre ações legítimas e não-legítimas, mas que não
especifica as condições de execução de ações legítimas. Como ocorre em geral, aqui
também a análise dos conceitos dados a priori precede a solução do problema de sua
síntese a priori; no presente caso, o problema de garantir a possibilidade de um ato de
síntese pelo qual declaro algo ser legitimamente meu.18
Dessa definição analítica da ação legítima, e levando em conta a característica das
ações externas de serem facta — isto é, de exercerem influências umas sobre as outras —
pode-se tirar uma conseqüência que fornece elementos para uma definição real da ação
legítima. Kant começa introduzindo o conceito de impedimento de ação legítima:
Se, portanto, a minha ação ou, em geral, meu estado puder coexistir com a liberdade de
cada um segundo uma lei universal, então fere o meu direito aquele que me impede nisso;
pois esse impedimento (essa resistência) não pode coexistir com a liberdade segundo leis
universais. (1797a, p. 33)
Depois de acrescentar que “tudo o que é não-legítimo é um impedimento da
liberdade segundo leis universais”, Kant prossegue:
17 Por essa razão, o princípio universal do direito é também chamado de “princípio de todas as máximas” do
direito (1797a, p. 34; cf. 1797b, p. 7).
18 O “princípio de todas as máximas” do direito pode ser formulado ainda na forma do seguinte imperativo:
“Aja externamente de tal maneira que o uso livre do seu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um
segundo uma lei universal” (17 97a, p. 34). Esse imperativo, chamado também de “lei universal do direito” ou
de “postulado” do direito, difere do imperativo categórico da moral em pelo menos dois pontos. Primeiro, ele
não exige que eu mesmo deva restringir a minha liberdade pelas máximas do direito, tal como a lei moral me
pede a mim para agir segundo o dever, mas diz apenas “que ela [a minha liberdade], na sua idéia, é restringida
por essa condição e que é lícito que seja efetivamente restringida pelos outros” ( idem). Segundo, as máximas
9
Portanto: se um certo uso da liberdade é um impedimento da liberdade segundo leis
universais (ou seja, é não-legítimo), então a coerção que lhe é interposta, enquanto
desimpedimento de um impedimento da liberdade, concorda com a liberdade segundo leis
universais, isto é, é legítima. (Ibid., p. 35)
Daí se conclui que a execução de uma ação legítima é sempre acompanhada pela
autorização de oferecer resistência efetiva ao impedimento da sua efetuação. Nas palavras
de Kant, “o conceito de direito é conectado, segundo a lei da não-contradição, à
autorização de exercer coação [Zwang] sobre quem infringir o direito” (p. 35). Do princípio
geral do direito (mais precisamente, das máximas do direito) segue-se, portanto,
analiticamente, um princípio de coação externa. Sendo uma conseqüência analítica da
definição, isto é, do que está “na idéia” da liberdade externa, esse princípio deve ser
considerado um juízo analítico. Kant o afirma explicitamente em Princípios metafísicos da
doutrina da virtude. O “princípio supremo do direito” de que “a coerção externa, na medida
em que esta é uma resistência oposta ao obstáculo da liberdade externa que concorda com
as leis universais (um obstáculo ao obstáculo à liberdade), pode coexistir com os fins em
geral” é claro “segundo a lei da não -contradição”, não sendo preciso ir “além do conceito
de liberdade externa para o conhecer”, qualquer que seja o fim objetivado. Portanto,
prossegue Kant, “o princípio do direito é uma proposição analítica” (1797b, p. 31). De
acordo com essa análise, o direito de executar uma ação legítima pode também ser
representado como “a possibilidade de uma coerção mútua universal [ durchgängig] que
concorda com a liberdade de cada um, segundo leis universais” (1797a, p. 35). Kant
termina essa análise afirmando: “O direito e a autorização de coagir significam, portanto, o
mesmo” (1797a, p. 36; itálicos meus).
4. A semântica do conceito de coerção mútua universal externa
Devido à sinonímia entre o direito natural de executar uma ação legítima
fundamentada na mera razão e a autorização de exercer coerção — desde que amparada em
uma lei universal — sobre os livres-arbítrios dos outros que se opõem a essa execução, a
realidade objetiva do conceito a priori de legitimidade pode ser assegurada, garantindo a
da ação legítima não precisam ser, tal como as máximas morais, elas próprias princípios de legislação
10
realidade objetiva do conceito a priori de coercitividade amparada em lei. Ocorre que
ambos são conceitos da razão prática e, de acordo com a semântica transcendental exposta
na primeira Crítica, de nenhum conceito da razão, teórica ou prática, pode ser exibido um
exemplo adequado. Nenhum deles pode ser apresentado (dargestellt) em algum domínio de
dados sensíveis fornecido pela intuição. Daí surge a suspeita de que esses conceitos possam
ser vazios, com a conseqüência de, se esse for o caso, eles não deverem ser usados em
juízos do direito feitos para fins doutrinais.
Contudo, alguns desses conceitos podem ser sensificados de modo indireto. Em
particular, do conceito de coerção mútua universal externa pode ser dado um exemplo na
“intuição a priori”, embora não diretamente, mas apenas “por analogia”, a saber, por
analogia “com a possibilidade de movimentos livres de corpos [físicos] sob a lei de
igualdade de ação e reação” ( p. 37). A lei em questão é, obviamente, a “terceira analogia”
do entendimento teórico.19 Esse princípio, diz Kant, é “como que a construção” tanto do
conceito da coerção universal, quanto — devido à sinonímia mencionada — do direito, o
que possibilita a “ap resentação” factual (sensível) desses dois conceitos da razão prática e,
assim, a sua aplicação no domínio de ações executáveis.
Uma pequena digressão impõe-se aqui. No presente contexto, “construção” designa
o modo pelo qual os conceitos teóricos são providos de referência e significado, isto é,
esquematizados.20 Um conceito do entendimento teórico — por exemplo, uma categoria —
esquematizado é dito “realizado”, isto é, referido diretamente ao domínio de experiência
possível, recebendo assim uma realidade objetiva teórica (KrV, B 185-6, 221, 268). Esse
procedimento de estabelecimento de referência e de sentido para os conceitos do
entendimento teórico deve ser distinguido do esquematismo por analogia ou simbolização,
empregado na sensificação das idéias da razão em geral.21 “O símbolo de uma idéia (de um
conceito da razão)”, diz Kant, “é uma representação do [seu] objeto segundo a analogia”
(Kant 1804, p. 63). Um conceito esquematizado por analogia ou simbolizado não é
universal, mas tão-somente compatíveis com uma lei universal da razão prática.
19 Na primeira edição da Crítica da razão pura, esse princípio é chamado de “princípio de comunidade” e
formulado da seguinte maneira: “Todas as substâncias, na medida em que existem simultaneamente, estão em
comunidade universal (isto é, em interação mútua)”. Trata -se, ao mesmo tempo, da versão kantiana da terceira
lei de Newton, a da ação e reação (cf. KrV, B 256 e ss.).
20 Na semântica kantiana de conceitos teóricos, o modelo da esquematização é a construção de conceitos na
intuição pura, tal como praticada por matemáticos desde a antigüidade (KrV, B 299; 1797a, p. IX).
21 Sobre esse ponto, cf., por exemplo, Kant 1793a, parágrafo 59.
11
“realizado”, pois o conteúdo ou a realid ade objetiva que lhe é conferida preserva algo de
ficcional. Sendo assim, tal conceito não pode ser usado para enunciar conhecimentos.
Mesmo assim, a simbolização de conceitos da razão é de grande importância operacional,
pois permite que essas idéias sejam empregadas na construção de do sistema da natureza —
esse é o caso das idéias teóricas, que servem para ordenar o conjunto das leis naturais
elaboradas pelo entendimento22 — bem como no estabelecimento do sistema da liberdade,
isto é, da regulamentação racional dos cursos do agir humano, que é a finalidade a que se
prestam as idéias práticas sensificadas.
Uma vez aceita a analogia entre a coerção mútua universal prática e física, o que é
subsumido sob o conceito de direito da razão pura prática não é diretamente essa ou aquela
ação do livre-arbítrio, mas o conceito puro do entendimento teórico de ação e reação: a
categoria da comunidade, empregada na formulação da terceira analogia (pp. 69 e 93). A
vantagem dessa subsunção é que, mesmo não sendo uma representação empírica, a
categoria em questão pode ser esquematizada (sensificada, tornada intuitiva) de duas
maneiras: a) pelo seu esquema; b) pelos modelos matemáticos.23 Kant dá por conhecido o
esquema da categoria da comunidade e explicita apenas uma analogia matemática que
representa a legitimidade das ações. Na matemática, só há uma reta entre dois pontos
dados; no direito, só há um único modo de assegurar a legitimidade e a retidão da
influência mútua entre dois agentes livres. Do mesmo modo, na matemática, só uma
vertical pode ser construída sobre uma reta dada; no direito, só há uma maneira de decidir:
a imparcialidade.24
O estabelecimento da analogia entre o conceito prático de coerção mútua universal
externa — que concorda com a liberdade de cada um segundo uma lei universalmente
válida — e a categoria da comunidade de objetos físicos — que corresponde ao princípio a
priori de ação e reação do entendimento — é a peça-chave da semântica kantiana dos
conceitos a priori da doutrina do direito e da doutrina da virtude. Kant sublinha a
importância dessa simbolização quando diz, no início de Princípios metafísicos da doutrina
22 A teoria kantiana do uso sistêmico das idéias teóricas encontra-se exposta em Loparic 2002, caps. 8-9.
23 Poder-se-ia acrescentar, como Kant faz ocasionalmente em Princípios metafísicos da doutrina do direito,
uma outra forma de sensificação do mesmo conceito, que considera o fato de que os seres humanos não
podem evitar entrarem em “interação” com os outros seres humanos (1797a, p. 163).
24 É interessante observar que, segundo Kant, há casos em que se assume direito sem coerção explicitável e
coerção sem direito, de modo que nenhum juiz pode decidir sobre os mesmos (1797a, pp. 39-42).
12
da virtude, que, na teoria do dever jurídico, “o meu e o seu devem ser determinados com
precisão, na balança da justiça, segundo o princípio de igualdade da ação e da reação e, por
isso, ser análogo à medição matemática” (1797b, p. IV). Essa analogia matemática apoia -
se, em parte, no fato, tirado da experiência, de que os homens “devem ser considerados
como existindo uns com os outros [als Mitmenschen], isto é, como seres racionais
necessitando de ajuda, reunidos, pela natureza, numa mesma morada com fins de amparo
mútuo” (1797b, p. 124).
Kant estende esse ponto de vista sobre toda a sua teoria dos deveres, isto é, toda a
metafísica dos costumes, dizendo:
Quando falamos em leis do dever (não em leis da natureza) e, em particular, da relação
externa entre os homens, consideramo-nos num mundo moral (inteligível), no qual,
segundo a analogia com o mundo físico, a conexão entre os seres racionais (na terra) é
realizada pela atração e repulsão. (1797b, p. 117)
A esquematização por analogia — esse ponto é muito importante para a
compreensão da semântica jurídica de Kant — não torna o conceito do direito um conceito
teórico, nem mesmo precisamente determinado. Ele continua um conceito prático e nãoaplicável
diretamente ao domínio das ações executáveis.
5. A exposição de conceito de “meu externo”
Depois de fazer essa análise semântica do conceito de ação externa legítima, Kant
passa a considerar, já no corpo da primeira parte de Princípios metafísicos da doutrina do
direito, dedicada ao direito privado, o problema da legitimidade de atos que declaram algo
como meu “meramente em termos de direito natural” ( bloss-rechtlich). Para tanto, ele se
pergunta, em primeiro lugar, o que significa dizer que um objeto externo é meu ou seu. Ou
seja, ele passa a tratar da semântica do predicado “meu” tal como usado no direito natural.
Kant começa notando que, a fim de poder chamar algo de legitimamente meu, eu
devo ter posse legítima desse algo. Assim surge um novo problema: que significa possuir
algo em geral e, em particular, possuir legitimamente? A resposta a essa pergunta implica a
especificação do que são os possíveis objetos de posse. Os objetos de posse podem ser
externos ou internos. Um objeto de posse externo é algo fora de mim, expressão que tem
13
dois sentidos: por um lado, ela designa algo distinto de mim, enquanto sujeito humano; por
outro, algo que se encontra em um outro lugar, no espaço e no tempo (1797a, p. 56).
Objetos tomados no primeiro sentido são meramente inteligíveis; os outros,
necessariamente sensíveis.
O objeto de posse interno é um só: a minha liberdade inata, isto é, a independência
da coerção por um outro arbítrio, “na medida em que ela pode coexistir com a liberdade de
todos os outros segundo uma lei universal” ( ibid., p. 45). Aqui, a liberdade não é definida
mediante a lei moral, nem como possibilidade de agir a seu bel-prazer, nem simplesmente
como livre-arbítrio (capacidade apetitiva ligada à consciência da capacidade de executar
ações de produção de objetos e determinada pela razão pura prática), mas pelo axioma do
direito explicitado acima. Trata-se da liberdade do arbítrio ou da liberdade na medida em
que ela é objeto da legislação externa da razão prática, daquela, portanto, que incide sobre a
liberdade no seu uso externo, enquanto origem de ações externas, que afetam outras
pessoas e objetos de uso externos.25
A liberdade interna de agir externamente, representada pelo conceito de liberdade
do direito natural, é legitimamente minha, ou seja, eu a possuo amparado diretamente na
razão prática. Tal posse se fundamenta em um direito natural “que compete a todos pela
natureza, independentemente de todo e qualquer ato jurídico” ( ibid., p. 44), isto é, um
direito que decorre do axioma do direito. Sendo assim, trata-se de um direito inato sobre a
liberdade que é igualmente inata e que diz respeito a ações que afetam objetos externos e
outras pessoas livres (nesse mesmo sentido) de executar ações externas. O direito inato da
liberdade inclui a igualdade inata e várias outras autorizações, implicando, de acordo com o
axioma do direito, a de opor resistência a todos os obstáculos ao uso externo da liberdade
jurídica interna (do meu interno), à toda violação do direito inato da liberdade.26
Kant distingue dois conceitos de posse de um objeto externo, algo que merece um
destaque especial. Um objeto externo é dito estar em minha posse física (empírica, sensível,
possessio phaenomenon) se ele for meu fisicamente, por exemplo, nas minhas mãos ou no
alcance dos meus canhões. Posse física de uma coisa é sinônimo de poder físico sobre essa
25 Cf. 1797a, pp. 62, 67 e 87. Existem, portanto, em Kant, várias definições do conceito de liberdade, de modo
que é necessário, em cada contexto, determinar com clareza qual dessas definições está pressuposta.
26 Segundo Kant, não seria correto dizer que eu possuo o direito inato da liberdade, pois o direito fundamental
“já é em si a posse inteligível”, e possuir uma poss e é uma “expressão sem sentido” (p. 62).
14
coisa, que é um certo tipo de “ligação física” com o objeto. Isso implica que o objeto de
posse seja também empírico e que existam relações espaço-temporais entre mim e o objeto.
Por outro lado, eu não posso deixar de considerar que permanece meu um objeto de
quem eu fui o primeiro a tomar posse e que declarei meu, quer pelas palavras quer de
alguma outra maneira, mas do qual, depois disso, eu me afastei fisicamente. Nesse caso,
trata-se de posse inteligível ou possessio noumenon de um objeto externo considerado,
também ele, como inteligível. Essa posse é tomada no sentido de “ligação da vontade do
sujeito com um objeto, independentemente da relação com o mesmo no espaço e no tempo”
(p. 69; itálicos meus). Aqui, o predicado “inteligivelmente meu” é aplicado a um objeto
externo “com o qual eu estou ligado de tal maneira que o uso que uma outra pessoa fizesse
desse objeto sem o meu consentimento me lesaria”, feriria o meu direito (natural) (p. 55).
Nos dois casos, o objeto externo possuído pode ser numericamente o mesmo (p. 56).
Entretanto, quando se fala em posse empírica, tanto a relação de posse quanto o objeto
possuído obedecem as condições de intuição, em particular, o objeto deve poder ser
conhecido empiricamente e ser objeto dos sentidos, um aparecimento (p. 93). Por outro
lado, o objeto de posse legítima deve ser pensado como coisa em si mesma (Sache an sich
selbst), “não como fenômeno, tal como definido na analítica transcendental” (p. 62). 27 Na
doutrina do direito, o objeto de direito, mesmo quando é cognoscível empiricamente, é
sempre considerado como objeto do arbítrio, isto é, da liberdade no seu uso externo,
determinado pela razão prática. Objetos desse tipo não são aparecimentos, mas “algos” aos
quais sou ligado em termos de relações meramente jurídicas. Como essas relações são
numenais, esses algos devem ser pensados também como numenais ou como “coisa s em si
mesmas”. Essa análise aponta um aspecto diferencial adicional da semântica jurídica de
Kant: os objetos de posse referidos em juízos de direito básicos não têm, para usar uma
expressão de Heidegger, o mesmo sentido de ser que os objetos acessíveis ao nosso
aparelho cognitivo na experiência possível.
6. O problema fundamental da semântica dos juízos sintéticos a priori do direito
natural
27 Kant chama o objeto de posse legítima de “Sache an sich selbst” e não de “Ding an sich selbst”, que é uma
expressão típica da crítica kantiana da razão teórica.
15
Os exemplos típicos de juízos básicos de direito são “Este objeto externo é meu”,
“Este objeto externo não é meu ” e “Este objeto externo é teu (não -meu)”. Segue -se que, do
ponto de vista de qualidade, esses juízos são afirmativos, negativos ou limitativos. Do
ponto de vista da quantidade, relação e modalidade, eles parecem ser singulares,
predicativos e assertóricos. Digo “parecem”, pois uma análise mais fina mostra que há
neles um quantificador universal oculto (pois, ao dizer “Este objeto de uso externo é meu”,
eu obrigo a todos que por ventura entrem em interação comigo a se absterem do uso desse
objeto), não expressam um predicado monádico e sim uma relação (ser meu é uma relação),
e enunciam uma obrigação não apenas afirmada, mas racionalmente necessária.28
No presente contexto, não poderei articular a semântica kantiana de todos os
momentos sintáticos dos juízos básicos de direito. Deter-me-ei exclusivamente na diferença
entre juízos em que o predicado “meu”, melhor dito, a relação de posse, é tomado no
sentido empírico e aqueles em que essa relação tem o sentido meramente inteligível. Esse
ponto é decisivo para todo o resto da análise semântica desses juízos oferecida por Kant em
Princípios metafísicos da doutrina do direito.
Se “meu” significa fisicamente meu, no sentido explicitado anteriormente, então o
juízo “Este objeto externo é meu” é analítico. Com efeito, nesse caso, o juízo básico do
direito diz o seguinte: “Se eu detenho uma coisa física 29 (estou ligado fisicamente com ela),
então, aquele que a afeta sem o meu consentimento (por exemplo, me arranca a maçã da
mão) [também] afeta e restringe o meu interno (a minha liberdade)” (p. 63). Um juízo com
esse conteúdo proposicional é analítico porque “não vai além do direito de uma pessoa com
respeito a si mesma”. Que direito é esse? O relativo ao “meu interno”, à minha liberdade,
que possuo em virtude de um direito inato. O uso externo do meu corpo — no exemplo de
Kant, da minha mão — “concerne tão -somente à minha liberdade externa, portanto, apenas
à posse de mim mesmo, não de uma coisa fora de mim” e, por conseguinte, baseia -se
“apenas no direito interno” (p. 70). O axioma do direito aplica-se tanto ao direito interno,
inato, quanto ao externo, adquirido por um ato. Sendo assim, a ação ou a máxima da ação
que consiste em arrancar-me a maçã da mão não pode coexistir com a liberdade do meu
arbítrio segundo uma lei universal. Ela contradiz o axioma do direito. Daí se segue,
28 A mesma diferença entre a sintaxe de superfície e a sintaxe profunda pode ser observada em outros casos,
por exemplo, nos juízos teóricos (cf. Loparic 2002, cap. 6) e nos juízos de gosto (cf. Loparic 2001).
29 No original: “Sache”.
16
analiticamente, que eu tenho direito natural de resistir fisicamente à mencionada ação, ou
seja, de defender fisicamente o que é meu fisicamente.
Consideremos agora o segundo caso, em que o predicado “meu” significa
“inteligivelmente meu”. Nesse caso, o juízo “Este objeto externo é meu” é sintético a
priori. Ele é a priori, por empregar um termo da razão pura prática, “inteligivelmente
meu”, que não tem qualquer sentido sensível imediato. Ele é sintético, pois não pode ser
derivado do axioma do direito, ou seja, da definição do conceito de legitimidade (p. 58).
Esse axioma não permite “impor a todos os outros uma obrigação, que de outro modo eles
não teriam, a de se absterem do uso de certos objetos do nosso arbítrio, porque nós os
tomamos em nossa posse [física] em primeiro lugar” (p. 58; itálicos meus). A possibilidade
da declaração de que um objeto externo é meu no sentido meramente inteligível levanta a
presunção do direito, que, por ser a priori, quer ser entendida como universalmente válida e
necessária, mas que, por ser sintética, ainda precisa ser justificada. Assim fica determinada,
com maior precisão, a tarefa fundamental da semântica jurídica de Kant: “como é possível
um juízo sintético a priori [básico] do direito?” (p. 63). 30 Como veremos, essa tarefa reduzse,
no essencial, à de estabelecer a possibilidade do único conceito a priori usado em juízos
desse tipo: o de posse inteligível.
7. A natureza do problema e o procedimento de solução
É essencial recordar, aqui, algumas distinções essenciais da teoria kantiana da prova
dos juízos sintéticos a priori em geral. Em primeiro lugar, o problema de provar a
possibilidade de um juízo desse tipo é diferente do de garantir a sua validade: no primeiro
caso, pergunta-se pelas suas “condições de possibilidade”, isto é, condições nas quais ele
pode valer ou não valer, no segundo, decide-se, a partir dessas mesmas condições, qual
dessas duas possibilidades exclusivas é realizada (no caso de um juízo teórico, se ele é
verdadeiro ou falso; no caso de uma proposição prática, se ela está vigorando ou não). No
presente contexto, trata-se unicamente de provar a possibilidade de juízos do tipo: “Este
objeto de uso externo é meu” — ou seja, de estabelecer que eles podem vigorar a priori e
que é, portanto, possível legislar por meio deles — e não de decidir se esse ou aquele
30 Como é óbvio, a mesma pergunta precisa ser feita e respondida com respeito a todos os outros juízos
sintéticos a priori do direito antes que sejam incluídos na doutrina do direito.
17
desses juízos de fato vigora ou não. Em segundo lugar, as condições de possibilidade e de
decidibilidade, consideradas por Kant, são sempre definidas num domínio de dados
sensíveis e, nesse sentido, objetivos: as dos juízos sintéticos a priori teóricos, no domínio
de objetos da experiência; e as dos juízos sintéticos a priori práticos, no domínio de ações
exeqüíveis pelo agente humano livre. Em decorrência disso, a possibilidade ou a validade
procuradas e eventualmente provadas são também ditas “objetivas”.
O método usado por Kant para resolver o problema da possibilidade objetiva dos
juízos sintéticos a priori do direito — o único que nos interessa aqui — é análogo ao
empregado, na primeira Crítica, para provar a possibilidade objetiva dos princípios do
entendimento. Nos dois casos, a parte central do procedimento é a prova de que os
conceitos a priori empregados nesses juízos — as categorias, nos princípios dos
entendimento; o conceito de meu inteligível, nos juízos básicos da doutrina do direito —
são objetivamente possíveis. De acordo com a tese geral da semântica kantiana dos
conceitos puros, repetida em Princípios metafísicos da doutrina da virtude (1797b, p. 6), a
consistência lógica não é suficiente para garantir a realidade objetiva do conceito. Para
tanto, é necessário mostrar a possibilidade real da coisa designada pelo conceito, ou seja, do
seu referente, dando uma definição real do conceito. Na primeira Crítica, Kant prova isso,
com respeito às categorias, em duas etapas: pela dedução transcendental desses conceitos e
pelo esquematismo transcendental dos mesmos. Em Princípios metafísicos da doutrina do
direito, Kant a procede, de novo, em dois passos: ele deduz a possibilidade objetiva a priori
de posse inteligível e oferece um procedimento para sua aplicação no domínio das ações
efetivamente executáveis.31 Ambos procedimentos são análogos, mas de modo algum
idênticos — como ficará claro a seguir — aos da dedução transcendental e do
esquematismo transcendental das categorias, respectivamente.
8. O postulado do direito
Kant deduz o conceito de posse inteligível mostrando que a sua possibilidade
objetiva (realidade objetiva prática jurídica) é uma “conseqüência imediata” do postulado
31 Como se trata de um conceito a priori da razão prática, “todas as condições da intuição que fundamentam a
posse empírica devem ser descartadas” (1 797a, p. 66). Sendo assim, no domínio de experiência teórica
possível, a realidade objetiva do conceito de posse meramente inteligível ou legítima não pode ser “provada”,
nem mesmo compreendida (eingesehen, p. 67; cf. p. 72).
18
do direito da razão prática: “A possibilidade de uma tal posse e, com ela, a dedução do
conceito de posse não-empírica fundamenta-se no postulado jurídico da razão prática”
(1797a, p. 67). Numa das formulações, esse postulado reza: “É facultado [möglich] ter
como meu todo objeto externo do meu arbítrio” (p. 56). Traduzo “möglich” por facultado
porque, segundo Kant, o postulado do direito expressa uma capacidade ou faculdade moral
de impor unilateralmente obrigações a todas as outras pessoas com as quais interagimos
livremente (p. 44). Por isso, Kant chama o postulado de direito de postulado de facultação
(Erlaubnisgesetz, pp. 58 e 93). O mesmo ponto é detalhado na observação:
segundo o postulado da razão prática, a cada um é proporcionada a faculdade de ter como
seu um objeto externo do seu arbítrio, cada detenção [Inhabung] sendo, portanto, um estado
cuja legitimidade [Rechtmässigkeit] se fundamenta naquele postulado, mediante um ato de
vontade antecedente. (1797a, pp. 75-6).
O postulado de facultação da coação unilateral não é um mandamento (lex
praeceptiva) nem uma proibição (lex prohibitiva, lex vetiti), mas uma autorização ou
permissão (lex permissiva).32 Enquanto lei permissiva, o postulado legitima, em nome da
razão pura prática, sobre a posse privada, impondo o dever de respeitar os atos legítimos
pelos quais asseguramos a posse particular de objetos externos do livre-arbítrio (1797a, p.
64).33 Esse componente do significado do postulado está explícito numa outra formulação,
que diz ser “o dever legal [ Rechtspflicht] agir em relação aos outros de tal maneira que o
externo (o utilizável) possa tornar-se o seu de qualquer um” (p. 67). 34 A razão “quer que
este tenha validade como princípio fundamental, enquanto razão prática que se amplia
através desse seu postulado a priori” (p. 58). 35
32 A mesma distinção é feita por Kant numa nota importante de À paz perpétua (1795, pp. 15-6), em que ele
chama a atenção dos teóricos do direito para a significação sistemática do conceito de lei permissiva. Esse
tema é retomado na Introdução de Princípios metafísicos da doutrina do direito (1797a, pp. 21-22).
33 Se o objeto externo possuído é uma coisa corpórea substancial, a posse é chamada propriedade (1797a, p.
95). A posse de serviços de outras pessoas e a posse de outras pessoas “de modo real” não é propriedade.
34 Desse postulado se segue, analiticamente, ser contrária ao direito (rechtswidrig) toda e qualquer máxima
“segundo a qual, caso ela se tornasse lei, um objeto do arbítrio deveria tornar -se em si (objetivamente) sem
dono (res nullius)” (1797a, p. 56).
35 Deixarei provisoriamente aberta a questão de saber se essa vontade racional é de cada um de nós, ou se ela
deve ser pensada como uma vontade geral ou como uma disposição natural do gênero humano no seu todo.
Essas alternativas são explicitadas por Kant em 1797b, p. 18.
19
Se o conceito de “ter como meu” é interpretado no sentido empírico, em que “meu”
significa “fisicamente meu” — meu em determinadas condições espaço-temporais —, o
postulado do direito é um juízo analítico, não acrescentando nada ao que já está dito no
axioma de direito que, conforme vimos anteriormente, é também uma proposição analítica.
Com efeito, se aquilo que está em meu poder físico não pudesse também estar no meu
poder legítimo, isto é, se a minha posse desse objeto não pudesse coexistir com a liberdade
de cada um segundo uma lei universal, então a liberdade “se privaria ela própria do uso do
seu arbítrio com respeito a um objeto, pelo fato de colocar os objetos utilizáveis fora de
toda possibilidade de uso, isto é, aniquilaria estes do ponto de vista prático e os faria res
nullius” (p. 57). Ora, continua Kant, uma razão prática, que não conhece outras leis senão
as formais, não pode, com respeito a um objeto de livre-arbítrio enquanto tal, “conter
nenhuma proibição absoluta, visto que isso seria uma contradição da liberdade externa
consigo mesma” ( ibid.).
Entretanto, se o predicado “meu” é tomado no sentido de posse inteligível, o
postulado do direito “não pode ser der ivado do mero conceito de direito em geral”. Ele diz
algo de novo e amplia o uso da razão prática, devendo, por conseguinte, ser considerado
como um juízo sintético a priori.36
9. Dedução da possibilidade do conceito de posse inteligível
A realidade objetiva do conceito de posse inteligível é uma conseqüência imediata
do postulado do direito na sua acepção sintética a priori. O argumento de Kant consiste
numa única frase, construída de forma hipotética: “Se é necessário agir de acordo com
aquele princípio do direito, então deve também ser possível a condição inteligível (de uma
posse meramente legal)” (1797a, p. 67).
No presente contexto, o termo “princípio do direito” designa o postulado do direito,
de modo que o antecedente da frase que enuncia a dedução fala da necessidade de agir de
acordo com o postulado do direito. Da mesma forma, a expressão “condição inteligível”,
que ocorre no conseqüente da dedução, não é usada para afirmar ser possível algo que
36 Aqui permanece em aberto a questão de saber se e como pode ser justificado o postulado do direito quando
tomado no sentido de juízo sintético a priori.
20
condicione a posse inteligível, mas, pelo contrário, que essa posse é implicada pela
necessidade de agir de acordo com o postulado.
Esse procedimento de dedução difere em vários pontos essenciais do empregado por
Kant na dedução transcendental das categorias. A prova da validade objetiva dos conceitos
a priori de entendimento no domínio de objetos sensíveis, oferecida na primeira Crítica,
consiste em mostrar, mediante análise conceitual, que esses conceitos são uma condição
necessária da validade objetiva de juízos sintéticos em geral.37 Kant encontrou essa solução
perguntado pela possibilidade dos juízos sintéticos a priori da matemática pura (geometria
euclidiana) e da ciência da natureza pura (física de Newton), considerados como facta ou
produtos da razão pura teórica (1793b, p. 39). Embora de validade incontestável, esses
juízos não deixam de ser, em si mesmos, casuais.38 Diferentemente disso, o conceito de
posse inteligível é deduzido mostrando-se que a sua validade objetiva, no domínio de ações
exeqüíveis por seres humanos, é implicada pela validade objetiva de um juízo prático a
priori — a saber, o postulado do direito, reconhecido não como um feito casual da
atividade igualmente casual da razão pura especulativa, mas como uma imposição aos
agentes humanos livres feita pela vontade legisladora da razão pura. Essa diferença pode
ser expressa da seguinte maneira: a razão teórica não quer, mas apenas possibilita, que a
geometria euclidiana seja inteligível e, mesmo a priori, verdadeira para o nosso aparelho
cognitivo; a razão prática quer (will) que a posse, “em termos do mero direito”, seja
praticável, sem garantir, contudo, a inteligibilidade de uma tal prática. Assegura-se apenas
que não admitir a possibilidade da posse inteligível seria contrário à vontade da razão e,
nesse sentido prático, irracional. A possibilidade de uma posse inteligível e, portanto, a do
meu e do seu “não pode ser compreendida [ eingesehen], tendo de ser concluída do
postulado da razão prática” (1797a, p. 72).
Por outro lado, o procedimento de dedução da realidade objetiva prática da posse
inteligível lembra fortemente aquele pelo qual Kant estabeleceu o mesmo resultado para o
conceito de liberdade na segunda Crítica: lá, a realidade objetiva prática da liberdade é
também estabelecida como conseqüência imediata de uma lei, a saber, a lei moral,
37 “O esclarecimento da possibilidade dos juízos sintéticos” é “a mais importante tarefa da lógica
transcendental”, diz Kant na primeira Crítica (B 193).
21
considerada como imperativo a priori.39 Nos dois casos, a dedução não garante a
inteligibilidade do conceito deduzido, mas tão-somente a sua possibilidade prática.40 O
próprio Kant enfatiza esse paralelo ao dizer que ninguém deve estranhar o fato de as
considerações sobre “o meu e o seu se perderem no inteligível”, visto que “o conceito de
liberdade, sobre o qual repousam, não é susceptível de nenhuma dedução teórica da sua
possibilidade e pode somente ser derivado a partir da lei prática da razão (o imperativo
categórico), enquanto um fato da razão” ( ibid., p. 67). Essa observação é particularmente
instrutiva, pois realça o alcance da técnica de dedução essencialmente diferente da usada na
primeira Crítica, aplicada pela primeira vez na Crítica da razão prática, no caso da idéia da
liberdade, e empregada posteriormente em várias obras, por exemplo, em Crítica da
faculdade do juízo e em Metafísica dos costumes.
Apesar do paralelo indicado, existe uma diferença importante entre a dedução da
realidade objetiva da liberdade, com fundamento na lei moral, e a dedução da posse
inteligível, no contexto do postulado de direito. A lei moral é um imperativo ou postulado
categórico. Ela diz que “se deve, incondicionalmente, proceder de uma determinada
maneira”, ordenando que nossas ações sejam governadas por máximas universalizáveis
(KpV, A 55). O postulado do direito é também um imperativo, mas não categórico, e sim
problemático, significando “aquilo que é compatível com uma razão prática meramente
possível” (KpV, A 22). Sendo uma lei meramente permissiva, ele não nos impõe, mas
apenas abre um espaço a priori para um determinado modo de vida.41 Por conseguinte, o
imperativo do direito não gera, como a lei moral, um fato (factum) da razão, mas tãosomente
permite que tais fatos sejam gerados por ações externas legítimas, isto é, ações
38 A circunstância de os facta da razão teórica serem casuais (zufällig, KrV, B 700) ou devidos à sorte (1793a,
p. 39) deixa aberto o caminho das dúvidas céticas sobre eles. Essas dúvidas só são levantadas pela crítica da
razão, isto é, pelo estudo dos limites da nossa capacidade cognitiva como tal (KrV, p. 789).
39 Retomado a sua tese exposta pela primeira vez na Crítica da razão pratica, Kant diz que “o imperativo
categórico, tomado no sentido moral-prático, prova, como que por um ditado [Machtspruch] da razão, que
nós, seres humanos, somos livres” (1797a, p. 113, nota).
40 Mesmo depois de demonstrada praticamente possível e até efetiva, a liberdade permanece incompreensível
(KpV, A 85).
41 O uso kantiano do termo “postulado” é inspirado na geometria grega (Euclides), onde designa uma ordem
ou imperativo de executar uma ação suposta como facilmente exeqüível por todos (cf., por exemplo, KrV, B
285-7 e KpV, A 55). Durante o desenvolvimento do seu programa crítico, Kant ampliou o conceito de
postulado para abranger proposições que postulam a possibilidade de objetos ou de suas propriedades, por
exemplo, de Deus e da imortalidade da alma (KpV, A 23).
22
cujas máximas podem ser compatibilizadas umas com as outras de acordo com uma lei
universal.42
Essa diferença só pode ser devidamente apreciada no contexto de uma
reconstituição mais detalhada do conceito kantiano de facticidade da razão. Destaco aqui
dois pontos dessa reconstrução, por serem particularmente esclarecedores. Em primeiro
lugar, convém considerar a distinção kantiana entre os facta da razão teórica, que acabo de
mencionar, e “o único fato da razão pura”, definido na segunda Crítica como consciência
de sermos internamente coagidos a agir de acordo com máximas universalizáveis,
consciência que é idêntica ao sentimento de respeito pela lei moral (1788, pp. 56-7). Essa
distinção precisa, por sua vez, ser analisada à luz da tese do Kant tardio de que a faculdade
teórica do ser humano, mas não a faculdade de auto-obrigação moral, pode muito bem ser
“qualidade de um ente corpóreo vivo” e de que não podemos decidir nem pela e xperiência
nem pela razão pura se a vida é ou não “uma propriedade da matéria”. Nas relações morais,
contudo, “revela -se a incompreensível propriedade da liberdade através da influência da
razão sobre a vontade legisladora interna”. O sujeito dessas relaçõ es não é o composto
formado por alma e corpo, o homem enquanto ser sensível (Sinnenwesen), caraterizado por
propriedades naturais e pertencente a uma espécie animal, mas o homem enquanto ser da
razão (Vernunftwesen, Kant 1797b, pp. 65-6).
Em segundo lugar, cabe distinguir entre o fato da razão, tal como definido na
segunda Crítica, e os fatos da razão que consistem em atos legislativos jurídicos a priori
válidos ou ações externas decorrentes destes últimos, ou seja, naquilo que o homem,
enquanto ser que age livremente — isto é, influenciado pela razão prática — faz de si
mesmo. O conjunto desses fatos da razão constituem o objeto da história a priori do gênero
humano, que, na sua essência, é uma história da racionalização moralizante e não da
racionalização prático-técnica.
10. Regras de aplicação do conceito de posse inteligível
A dedução do conceito de posse inteligível mostrou que, dado o postulado do
direito, esse conceito é objetivamente possível, sem especificar, entretanto, como ele pode
42 A distinção kantiana entre os imperativos problemáticos e categóricos (apodíticos) é relacionada a suas
considerações sobre a modalidade dos juízos práticos que, por sua vez, remetem à tábua das categorias da
razão prática, ou seja, às categorias da liberdade (KpV, A 21-2, 117-8).
23
ser aplicado no domínio da práxis humana.43 A fim de garantir a possibilidade de legislar
sobre o meu e o seu, usando juízos do tipo “Este objeto de uso externo é meu”, é
necessário, ainda, identificar procedimentos pelos quais é possível tornar praticamente real
a relação ou a ligação entre a minha vontade e o objeto externo, que é pensada a priori no
conceito de posse inteligível. É só dessa maneira que a doutrina do direito poderá ir além
dos pressupostos da razão prática e mostrar-se “frutífera” como guia do agi r humano (p.
51).
Visto que o conceito de posse legítima é um conceito a priori da razão, ele “não
pode ser aplicado diretamente aos objetos da experiência e ao conceito de posse empírica”
(p. 68; itálicos no original). Em outras palavras, ele não pode ser esquematizado da mesma
maneira como são esquematizadas, por exemplo, as categorias do entendimento teórico.
Sendo impossível encontrar uma referência sensível direta e adequada do conceito de
posse numenal, deve-se concluir que esse conceito é vazio de conteúdo, sem nenhuma
realidade objetiva prática, ou tentar encontrar — é isso que faz Kant — um procedimento,
menos direto e só parcialmente adequado, para garantir a sua aplicabilidade às ações
humanas.
Em grandes linhas, a solução de Kant consiste de novo numa esquematização por
analogia. O conceito de posse inteligível precisa, em primeiro lugar, ser referido a um
conceito intermediário, também a priori, que é o conceito de possessão (Begriff des
Habens), pertencente ao entendimento teórico, cujo objeto é algo externo a mim e
submetido à minha força coercitiva (Gewalt). Se eu subsumir o conceito de posse
inteligível teórica sob o conceito de posse inteligível prática ou, inversamente, se eu
interpretar este último pelo primeiro, então, a minha declaração de que um objeto externo é
meu em termos de mero direito — por exemplo, que este campo é meu nesses termos,
declaração pela qual presumo que ele é meu efetivamente, mesmo quando eu não o ocupo
fisicamente — significa que eu me encontro “numa relação intel ectual com esse objeto, na
medida em que ele está sob a minha força coercitiva (que é um conceito do entendimento
de posse, independente de determinações espaciais)” (1797a, p. 69; itálicos no original).
43 Da mesma forma, a dedução transcendental das categorias (teóricas) estabelece tão-somente que elas
contêm “os fundamentos da possibilidade da experiência”, e não como elas tornam possível a experiência
(KrV, B 176).
24
Assim, a realidade objetiva prática do conceito de posse inteligível é garantida pela sua
aplicabilidade no domínio de ações causais físicas pensadas teoricamente. Kant escreve:
É precisamente nisto — no fato de, abstraindo da posse no aparecimento (da detenção) de
um objeto do meu arbítrio, a razão prática querer que a posse seja pensada segundo
conceitos do entendimento, não segundo os empíricos, mas segundo aqueles que contêm a
priori as suas [da posse] condições — que repousa o fundamento da validade de um tal
conceito de posse (possessio noumenon) valendo como uma legislação universal; pois uma
tal legislação é contida no juízo: “Este objeto externo é meu. (Idem)
Ora, tal como qualquer outro conceito a priori do entendimento, o de força ou causa
coercitiva também admite, pelo menos em princípio, ser aplicado aos conceitos empíricos,
por exemplo, aos conceitos que designam meus poderes causais físico-empíricos sobre um
objeto externo, tal como o poder das minhas armas. Dessa maneira, o conceito jurídico a
priori de posse legítima passa a ser aplicável no domínio de ações (efetivamente)
executáveis, o que assegura, ainda que de maneira indireta e apenas mediante uma analogia,
a realidade objetiva prática dos juízos sintéticos a priori básicos da metafísica dos costumes
no domínio sensível do agir humano. No essencial, o problema da aplicabilidade efetiva do
conceito de posse inteligível da razão prática — que não deve ser confundido com o da
dedução desse conceito, analisado anteriormente — é reduzido ao da aplicabilidade efetiva
do conceito de força coercitiva do entendimento teórico. A legislação jurídica a priori sobre
o meu e o seu pode ser interpretada e aplicada em termos de leis para o uso de nossas forças
de coerção, pensadas em termos empíricos técnico-práticos.
Na segunda seção (Hauptstück) da “Doutrina do direito privado” — que pertence à
parte inicial de Princípios metafísicos da doutrina do direito44 — Kant dedica-se
precisamente à tarefa de identificar os procedimentos empíricos (tomada efetiva de posse,
uso de força individual ou de forças armadas, contrato, leis positivas anteriores a uma
constituição civil etc.) pelos quais adquirimos e exercemos posse legítima sobre os
diferentes tipos de objetos externos. Esses mesmos procedimentos são também usados
como instrumentos de prova, isto é, de decisão sobre o que é legitimamente meu ou seu.
Menciono, a título de ilustração, a tese de Kant de que, no estado de natureza — antes,
25
portanto, do estabelecimento de uma constituição civil amparada na razão e no poder
coercitivo do Estado —, eu não posso declarar ser legitimamente meu um objeto que não
estou em condições de defender fisicamente, por exemplo, o alto-mar que está fora do
alcance dos meus canhões (pp. 87-88).
A esquematização do conceito de posse inteligível é semelhante, mas não idêntica, à
oferecida para o conceito de coerção mútua universal externa (cf. seção 4, acima). A
semelhança está no fato de, nos dois casos, os conceitos jurídicos da razão prática serem
interpretados por conceitos causais (relações causais) do entendimento teórico. A diferença
reside na escolha desses últimos: o conceito de coerção mútua é esquematizado
simbolicamente pela categoria da comunidade (causalidade recíproca, circular) e o de posse
inteligível, pela categoria da causalidade (unilateral, linear). Essa diferença gera um novo
problema: como posso estar seguro de que todos os outros vão reconhecer a legitimidade de
meu ato unilateral e comportar-se de acordo com isso?
A solução de Kant começa pela observação de que o juízo pelo qual declaro algo
externo meu em termos de direito contém “a reciprocidade da obrigatoriedade a partir de
uma regra universal” (1797a, p. 73). Entretanto, visto que um ato de vontade unilateral —
que diz respeito a uma posse externa e que é, portanto, acidental — não pode, por si só,
servir de lei coercitiva para todos, temos de entender que “somente uma vontade que obriga
a todos, sendo, portanto, coletiva, universal (comum) e detentora de poder é aquela que
pode garantir para todos aquela segurança” (1797a, p. 73). 45
Ora, o único modo de organização social em que existe uma legislação
acompanhada de poder universal externo, isto é, publico, é o estado civil. Portanto, somente
num estado civil pode haver o meu e o seu de modo seguro, sem implicar guerra. Antes do
estabelecimento de uma organização social baseada em uma legislação pública, isto é, uma
constituição civil, a minha posse inteligível de um objeto externo permanece legalmente
provisória, e só se torna peremptória depois da realização efetiva de um Estado de direito.
Quando tal ocorre, o meu ato unilateral passa a poder ser pensado como “contido na
vontade coletiva unificada” (p. 85), ou ainda, como “proveniente da razão prática” (p. 78).
44 Kant 1797a, parágrafo 10 e seguintes (p. 76 e ss.).
45 Esse ponto é de importância capital, pois marca a passagem da teoria do livre-arbítrio individual para a
teoria da vontade geral. Para uma outra formulação da mesma tese, cf. 1797a, p. 85.
26
Sendo assim, a permissão que é dada ao sujeito humano, pelo postulado do direito, de ter
como seu todo e qualquer objeto de uso externo implica uma adicional: a de “forçar
[nötigen] todo outro, com quem chega a se envolver num conflito sobre o meu e o teu
relativamente a um tal objeto, a entrar com ele num estado governado por uma constituição
civil” (p. 73).
11. Passagem para uma política e uma história a priori
Essa mesma permissão a priori foi formulada por Kant já em 1795, numa nota ao
primeiro artigo definitivo da paz enunciado em À paz perpétua. Visto que o estado de
natureza é um estado de guerra, quem permanecer, vivendo ao meu lado, num estado de
natureza, “lesa -me por esse mesmo estado”, pois a falta de legislação é uma ameaça
permanente para mim. Por isso “eu posso forçá -lo a entrar comigo num estado
comunitariamente legal [gemeinschaftlich-gesetzlich] ou a se afastar da minha vizinhança”
(1795, p. 19). Essa permissão é formulada por Kant no seguinte “postulado”: “Todos os
seres humanos, que podem exercer influência mútua uns sobre os outros, têm de pertencer a
uma constituição civil qualquer” ( idem).
Tal como o postulado do direito estabelece deveres do direito ou deveres legais, este
novo postulado, que podemos chamar de postulado político fundamental de Kant, não
enuncia apenas uma permissão, mas também um dever, a saber, o dever político básico de
todo povo, expresso na fórmula: “Todo povo deve unir -se num Estado unicamente segundo
os conceitos do direito de liberdade e de igualdade” (p. 86). Uma política desenvolvida a
partir desse “comunitarismo”, baseado em contrato social, estará “n ecessariamente ligada
ao conceito de direito”, sendo, no essencial, “a doutrina do direito em exercício [ ausübende
Rechtslehre]” (p. 71). Assim concebida, a política será sempre uma “política moral”, a
moral sendo entendida como doutrina do direito (p. 101). Claro está que as máximas dessa
política não poderão ser tiradas de expectativas empíricas quanto ao bem-estar ou a
felicidade dos cidadãos, mas derivadas “do puro conceito do direito (do dever, cujo
princípio é dado a priori pela razão pura)” (p. 88). Esse é o caso precisamente dos três
artigos definitivos em prol da paz perpétua. Todos eles enunciam deveres, a saber, deveres
jurídico-políticos. Eles são justificados por considerações que remetem à doutrina kantiana
27
do direito, estabelecida em 1797, e seu cumprimento promove o estabelecimento da paz
perpétua internacional.
Dessa forma, abre-se a perspectiva para “uma política que possa ser conhecida a
priori” (1795, p. 85). Que significa aqui poder “conhecer” a priori uma política? De acordo
com a linha de interpretação do projeto crítico kantiano seguida no presente trabalho,
significa estabelecer a priori a possibilidade e a vigência de princípios fundamentais dessa
doutrina e garantir a sua exeqüibilidade mediante considerações de caráter antropológicopragmático.
A primeira tarefa desdobra-se em duas: 1) mostrar que os princípios da
doutrina do direito, pressupostos na teoria política, não são “pensamentos vazios de
conteúdo” ( sachleere Gedanken, p. 71); 2) mostrar o mesmo para as máximas da própria
política, em particular, fazer ver que os artigos definitivos em prol da paz perpétua são
possíveis e que, portanto, a idéia da paz perpétua não é “vazia”, mas uma tarefa
humanamente factível.46
Nos dois casos, o problema é o mesmo: mostrar que os princípios em questão “se
deixam executar” (p. 91). Kant avança na direção de sua solução, apontando para o fato “de
que o princípio moral no ser humano nunca se apaga, de que, além disso, do ponto de vista
pragmático, a razão, capacitada para a execução de idéias do direito segundo aquele
princípio [da paz perpétua], cresce constantemente através da cultura em progresso
permanente” (p. 90). 47 Sendo assim, existe uma “esperança fundada” de que as sucessivas
tentativas de criar um estado de paz perpétua “aproximam-se constantemente da sua meta
(visto que os tempos, nos quais semelhantes progressos acontecem, tornam-se, como é de
se esperar, cada vez mais curtos)” (p. 104). 48
46 O aspecto “realista” do pensamento político de Kant foi devidamente destacado por outr os autores (cf., por
exemplo, Beck 1957, Kersting 1993 e Heck 2000), embora não no contexto da problemática do “sentido e
significado” dos juízos políticos.
47 A idéia da capacitação ou aptidão (Tüchtigkeit) da razão para influenciar os seres humanos pela idéia da
autoridade da lei, como se possuísse um poder coercitivo físico, explicitada em vários outros trechos de À paz
perpétua (cf., por exemplo, 1795, pp. 72 e 104), retoma, por um lado, a doutrina kantiana do fato da razão
exposta em Crítica da razão prática e, por outro, prepara o caminho para Princípios metafísicos da doutrina
da virtude, onde a virtude é definida como “força da máxima no homem no cumprimento do seu dever”
(1797b, p. 28). Tenho dificuldade, portanto, em concordar com Terra quando diz que, em À paz perpétua,
Kant pensa a garantia da paz numa perspectiva reflexionante-teleológica (1997, p. 222) e que “o cruzamento
no juízo político do juízo determinante com o reflexionante-teleológico e o estético-político marca a
especificidade do campo da política” ( ibid., p. 231). Do ponto de vista de uma teoria do juízo, é difícil
entender o que um “cruzamento” desse tipo pode significar.
48 À luz dessa linha de interpretação da filosofia prática de Kant, centrada na sua semântica dos juízos a priori
práticos, a filosofia política de Kant, tal como exposta em À paz perpétua, adquire uma consistência que lhe
28
Essas teses sobre a possibilidade de realizar a tarefa de estabelecer a paz perpétua,
definida em termos da doutrina do direito, preparam a resposta para uma outra pergunta
necessária da razão prática: como é possível uma história a priori? Essa indagação,
colocada por Kant pela primeira vez explicitamente em O conflito das faculdades (1798a,
p. 132), pode ser reformulada da seguinte maneira: será que o gênero humano (no seu todo)
progride constantemente para o melhor? “Melhor” pensado em termos de direito, ou seja,
como qualificação de uma constituição civil comparativamente mais concorde com os
interesses da razão prática. A resposta a essa pergunta é possível, e pode ser expressa
“como narração histórica antecipadora [ wahrsagende Geschichtserzählung] do que nos
aguarda no tempo futuro”, portanto, acrescenta Kant, “como uma apresentação
[Darstellung] a priori possível dos acontecimentos que devem chegar” ( idem). Às
narrativas antecipatórias podem ser acrescentadas as referentes ao passado e ao presente (p.
142). A história a priori procurada por Kant, consiste, portanto, de juízos narrativos
antecipatórios, rememorativos e constatativos, que repousam, todos eles, sobre o seguinte
juízo fundamental da teoria kantiana da história: “O gênero humano tem progredido sempre
para o melhor e continuará a progredir da mesma maneira no futuro” (p 151).
Aqui se coloca necessariamente a pergunta central da filosofia crítica de Kant: como
são possíveis os juízos sintéticos a priori da história? — pergunta de natureza semântica e
que se torna, ipso facto, o problema fundamental da teoria kantiana da história. Trata-se de
saber, em primeiro lugar, como é possível — e, sendo possível, como pode ser provado —
o juízo fundamental a priori da história que acabo de enunciar, juízo que, como se vê
facilmente, não é nem teórico, nem moral, nem jurídico, nem reflexivo. De acordo com a
regra básica da semântica transcendental, a prova da possibilidade desse juízo exige que ele
seja referido a uma experiência sensível. É precisamente essa exigência que Kant reafirma
no título do parágrafo 5 de O Conflito das faculdades: “A história antecipatória do gênero
foi negada por certos autores guiados por outras hipóteses interpretativas. Refiro-me, em particular, a Hannah
Arendt (1985), que menospreza a relevância da filosofia kantiana do direito para a compreensão de assuntos
políticos, tratando À paz perpétua como um texto menor e recorrendo aos juízos teleológicos-estéticos da
terceira Crítica para reconstruir a teoria kantiana da política. Na minha interpretação, a vida política, tal como
concebida por Kant, é “comunitariamente legal” ou, alternativamente, “legalmente comunitária”
(gemeinschaftlich-gesetzlich), no sentido de a sociedade civil dever ser fundada em máximas ditadas pela
vontade racional coletiva, sensificada como gênero humano em progresso constante para o melhor, definido
este a partir da doutrina do direito; na interpretação de Arendt, o caráter comunitário de uma política do tipo
kantiano basear-se-ia em um senso comunitário análogo ao senso comunitário estético. Os meus resultados
aproximam-se, entretanto, de certas leituras mais recentes, como a de Volker Gerhardt (1995).
29
humano tem de ser conectada com uma experiência [Erfahrung] qualquer”. Logo em
seguida, ele esclarece de que tipo de experiência se trata: “Deve produzir -se no gênero
humano alguma experiência que, como acontecimento [Begebenheit], indica sua [do gênero
humano] disposição constitutiva e capacidade de ser a causa do seu progresso para o
melhor e (já que isso deve ser o ato de um ser dotado de liberdade) autor do mesmo” (p.
141). A autoria do progresso é pensada por Kant como uma tendência a priori — em
particular, de estabelecer constituições republicanas —, presente não em indivíduos, mas no
gênero humano no seu todo. Aqui temos um novo conceito da filosofia prática de Kant, de
caráter misto, pois designa, por um lado, a causa numenal que é a autora do progresso
jurídico-político — a vontade racional coletiva, dotada de força de coerção universal — e,
por outro, os modos concretos de manifestação dessa causa na história factual. A primeiro
momento desse conceito é um acréscimo importante à metafísica dos costumes; o segundo,
à antropologia pragmática. Ele encontra-se desenvolvido na parte final de Antropologia —
obra publicada no mesmo ano de O Conflito —, que trata de traços fundamentais do caráter
da espécie humana. Lá se lê que a humanidade, como espécie, tem a tendência, decorrente
da sua natureza racional, “de realizar, mediante a sua própria atividade, o desenvolvimento
do bem a partir do mal” (1798b, p. 329; itálicos meus). 49 É por isso que Kant pode dizer,
em O conflito das faculdades, que uma história a priori é possível “se aquele que antecipa
o futuro faz e promove, ele próprio, os acontecimentos que anuncia” (1798a, p. 132), tese
que confere a esse tipo de desenvolvimento o caráter de self-fulfilling prophecy.
Sendo assim, é preciso “buscar um acontecimento que indique a existência [Dasein]
de uma tal causa, bem como o ato da sua causalidade na história da humanidade, sem a
determinação do mesmo com respeito ao tempo” (pp. 141 -2). Existiria um acontecimento
que poderia satisfazer a essas condições? Existe sim, responde Kant: trata-se da maneira
como a opinião pública mundial experienciou as conquistas da Revolução Francesa. Essa
experiência consistiu no desejo de participação (Teilnehmung dem Wunsche nach) que
beirava o entusiasmo (p. 144).50 O júbilo com o qual o gênero humano participou da
49 Essa observação sugere a necessidade de se fazer uma história da antropologia pragmática de Kant, que
leve em conta os avanços das suas considerações sobre os conceitos fundamentais da metafísica dos costumes
e a sua aplicabilidade à “natureza humana”.
50 Segundo Princípios metafísicos da doutrina da virtude, a participação afetiva na promoção do bem é uma
virtude individual que decorre da razão prática (1797b, parágrafo 34). A “participação no bem com afeto”, da
30
evolução da constituição republicana, revelada pelos acontecimentos na França que
marcaram o fim do século XVIII, é o “signo demonstrativo” procurado de uma “disposição
fundamental do gênero humano” (Kant não diz mais “do ser humano”) de progredir para o
que é moral e juridicamente melhor. Essa experiência é, ao mesmo tempo, um “signo
rememorativo” — permitindo dizer, com base mais feitos jurídico-políticos, que, desde
sempre, a humanidade progrediu dessa maneira — e “prognóstico”, pois autoriza prever, a
priori, que ela continuará progredindo assim.
Kant consegue aqui um avanço decisivo para a sua semântica dos juízos a priori
políticos e históricos: não por ter introduzido a idéia abstrata de vontade geral unificada —
esse passo já foi dado em Princípios metafísicos da doutrina do direito —, mas por ter
elaborado a idéia de uma vontade geral sensificada, mais precisamente, o conceito de um
sujeito coletivo da história, caracterizado por uma tendência para o moral e juridicamente
melhor, dotado não apenas de propósitos e de capacidades de agir, mas também de outras
faculdades até então comumente reservadas aos indivíduos, como a memória: a conquista
da constituição republicana pelo povo francês é um fenômeno (Phänomen) da história da
humanidade “que não se esquece mais” (p. 150; itálicos de Kant). A possibilidade de uma
política e de uma história a priori pode, então, ser garantida pela aplicação de conceitos e
juízos dessas duas doutrinas ao domínio de dados sensíveis constituídos pelo que pode
fazer ou deixar de fazer o gênero humano.51 Quando não apenas os indivíduos, mas os
grupos organizados, e mesmo a humanidade inteira, habitando o globo terrestre como um
sujeito coletivo real, passam a fazer o que a opinião pública considera que deva acontecer,
por razões a priori, quando surge um movimento universal a favor da realização de nossos
deveres legais e políticos, tornam-se possíveis, e mesmo demonstráveis, não apenas o juízo
fundamental da história, mas também todos os juízos sintéticos a priori, de caráter
qual Kant fala em O conflito das faculdades (p. 145), só pode ser considerada virtude coletiva, atribuível a
um sujeito coletivo — um tema que exigiria, portanto, uma extensão da metafísica dos costumes de 1797.
51 As conseqüências dessa mudança do domínio de interpretação dos juízos da história escaparam a vários
comentadores. Weil, por exemplo, não conseguiu refazer o passo de Kant que consiste em reconhecer a
humanidade como sujeito jurídico-moral, razão pela qual reserva a condição de “sujeito moral” tão -somente
para o indivíduo (Weil 1982, p. 140). Philonenko — para citar mais um comentador de destaque — objeta a
Kant o fato de este permanecer no campo da utopia histórica, pois entende que, mesmo nos escritos tardios, a
razão prática kantiana continua sendo a ratio cognoscendi da Providência divina (Philonenko 1982, p. 72).
Além de incompatível com as análises apresentadas, esta tese é irreconciliável com o parágrafo 4 de O
conflito das faculdades e com tudo o que Kant afirmou sobre o fracasso inevitável de qualquer tentativa
filosófica de produzir uma teodicéia (cf. Kant 1791).
31
narrativo, que antecipam a priori acontecimentos reais como resultados do progresso para o
melhor (por exemplo, a diminuição da violência entre indivíduos e povos, o aumento do
bem-estar social etc.).
Essas indicações bastam, creio eu, para tornar patente que os juízos da história, cuja
semântica foi esboçada por Kant em 1798, constituem uma classe à parte de juízos a priori,
pois diferem substancialmente dos juízos vaticinantes ou proféticos — inaceitáveis em
qualquer doutrina que pretende passar pelo crivo da crítica kantiana —, bem como de todas
as outras classes de juízos a priori, sejam eles teórico-preditivos, moral-determinantes,
jurídico-legislativos ou mesmo reflexionantes, cuja semântica foi elaborada por Kant em
suas obras anteriores.52 O asseguramento do “sentido e significado” dessa novo tipo de
juízo a priori não só permite a constituição de uma história como doutrina a priori, como
abre perspectivas para uma releitura da filosofia política de Kant a partir da sua filosofia da
história.
12. A filosofia prática posta dentro dos limites do projeto crítico
A análise que acabo de apresentar permite um retrospecto interessante sobre o
caminho percorrido por Kant na busca da formulação e da resolução dos problemas da
metafísica dos costumes no quadro do seu projeto crítico, ou seja, a partir da pergunta:
como são possíveis os juízos sintéticos a priori em geral? Em Crítica da razão pura
(1781), a filosofia prática é deixada inteiramente fora do projeto da filosofia transcendental
e o problema da possibilidade dos juízos sintéticos a priori práticos não é nem ao menos
formulado (KrV, B 833). Em Idéia de uma história universal do ponto de vista
cosmopolita, de 1784, a história da humanidade é pensada como uma história natural,
portanto, sem conexão com uma teoria de juízos práticos a priori. Fundamentação da
metafísica dos costumes é a primeira obra de Kant que formula explicitamente o problema
da possibilidade dos juízos a priori sintético-práticos (1785, p. 50), mas reconhecidamente
fracassa na tentativa de solucioná-lo, em parte por buscar a resposta no estudo da
52 A presente reconstrução, decididamente programática, do caminho percorrido por Kant na elaboração de
sua filosofia prática vale-se, no essencial, do mesmo material considerado por R. Terra em A política tensa
(1995), obra que oferece uma abordagem mais doxográfica, incorporando um vasto espectro das discussões
recentes sobre o tema. O leitor não poderá deixar de notar certas divergências tanto nos pressupostos — um
deles diz respeito à natureza do programa kantiano de uma filosofia crítica — como nos resultados — um dos
32
“faculdade racional prática” do ser humano, recorrendo a considerações de ordem
metafísica. A solução é encontrada tão-somente doze anos depois, na Crítica da razão
prática (1788), e consiste na tese de que a consciência da necessitação da nossa vontade
pela lei moral — necessitação a nos impõe a obrigação de agirmos segundo máximas
universalizáveis — é a evidência factual ou sensível suficiente da efetividade dessa lei e,
portanto, também da sua possibilidade. Em À paz perpétua, de 1795, esse tipo de
abordagem, que substitui da considerações material-ontológicas por questões de
exeqüibilidade de ações governadas por conceitos práticos, passa a ocupar,
progressivamente, o primeiro plano no tratamento dos assuntos da filosofia política. Em
Princípios metafísicos da doutrina do direito, publicados dois anos depois, a linha geral da
investigação é dirigida precisamente para questões de interpretabilidade dos conceitos
puros práticos do direito pelos conceitos puros teóricos do entendimento (relativos ao uso
de força física) e de aplicabilidade prática dos primeiros, mediante esquemas puros e
exemplos empíricos para os segundos. O mesmo deslocamento da problemática kantiana do
campo da ontologia para o da semântica observa-se na teoria kantiana da história,
estreitamente ligada às teorias do direito natural e da política, com a diferença de que, nesse
caso, o domínio de interpretação não são os atos dos indivíduos mas do gênero humano.53
Essa virada semântica na abordagem das questões da metafísica dos costumes
também permite ao Kant tardio resolver, de uma nova maneira, questões relativas à unidade
do sistema da filosofia crítica. O problema da compatibilidade entre a natureza e a
liberdade, por exemplo, não fica em aberto, como na primeira Crítica, nem permanece
confinado aos juízos meramente reflexivos, como ocorre na terceira Crítica, mas recebe
uma solução, ao mesmo tempo racional e sensificada, em termos da teoria da
exeqüibilidade física de princípios a priori de política moral, teoria iniciada, como mostrei,
em À paz perpétua e completada em O conflito das faculdades.
quais concerne à relevância da problemática de juízos sintético-práticos a priori para o desenvolvimento da
filosofia prática de Kant e, em particular, da sua teoria da política e da história.
53 Aqui seria o lugar de se perguntar, também, o que Kant tem a dizer sobre a possibilidade de uma pedagogia
a priori.
33
Referências bibliográficas
Arendt, Hannah 1985: Das Urteilen. Texte zu Kants politischen Philosophie.
München, Piper.
Beck, Lewis W. 1957: “Introduction”, in Kant 1957.
Felipe, Sonia (orga.) 1998: Justiça como eqüidade. Florianópolis, Insular.
Gerhardt, Volker 1995: Immanuel Kants Entwurf “Zum ewigen Frieden”. Eine Theorie der
Politik. Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft.
Heck, José N. 2000: Direito e moral. Duas lições sobre Kant. Goiânia, Editora UFG.
Höffe, Otfried 1985: Introduction à la philosophie pratique de Kant. Albeuve, Castella.
Kant, Immanuel 1781: Crítica da razão pura (KrV). 2a. ed. 1787 (B).
------ 1783: Prolegômenos.
------ 1784: Idéia de uma história universal do ponto de vista cosmopolita.
------ 1785: Fundamentação da metafísica dos costumes.
-------1786: Metaphysische Anfangsgründe der Naturwissenschaft.
------ 1788: Crítica da razão prática (KpV, A).
------ 1791: Über das Misslingen aller philosophischen Versuche in der Theodizee.
------ 1793a: Crítica da faculdade do juízo. 2a. edição.
------ 1793b: Über den Gemeinspruch: das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht
für die Praxis.
------ 1795: À paz perpétua. Um projeto filosófico.
------ 1797a: Metaphysische Anfangsgründe der Rechtslehre.
------ 1797b: Metaphysische Anfangsgründe der Tugendlehre.
------ 1798a: O conflito das faculdades.
------ 1798b: Anthropologie in pragmatischer Hinsicht.
------ 1804: Welches sind die wirklichen Fortschritte die die Metaphysik seit
Leibnizens und Wolffs Zeiten in Deutschland gemacht hat.
------ 1957: Perpetual Peace. Indianapolis, Bobbs-Merrill.
Kersting, Wolfgang 1993: Wohlgeordnete Freiheit. Immanuel Kants Rechts- und
Staatsphilosophie. Frankfurt/M, Suhrkamp.
Loparic, Zeljko 1998: “Sobre a interpretação de Rawls do fato da razão”, in Felipe (orga.)
1998.
34
------ 1999: “O fato da razão – uma interpretação semântica”, Analytica, v. 3, n. 2, pp. 13-
55.
------ 2001: “Acerca da sintaxe e da semântica dos juízos estéticos”, Studia kantiana, v. 3,
pp. 49-90.
------ 2002: A semântica transcendental de Kant. 2a. edição. Campinas, CLE.
Philonenko, A. 1982: Études kantiennes. Paris, Vrin.
Rohden, Valério (org.) 1997: Kant e a instituição da paz. Porto Alegre, Goethe-Institut.
Terra, Ricardo 1995: A política tensa. Idéia e realidade na filosofia da história da Kant.
São Paulo, Iluminuras.
------ 1997: “Juízo político e prudência em À paz perpétua”, in Rohden (org.) 1997, pp.
222-32.
Weil, Eric 1982: Problèmes kantiens. Paris, Vrin.

OLAVO DE CARVALHO - Dois estudos sobre Aldous Huxley

Dois estudos sobre Aldous Huxley

Olavo de Carvalho
Prefácios a Admirável Mundo Novo e A Ilha,escritos para a reedição dessas obras pela Editora Globo, São Paulo, 2001.1. Admirável Mundo Novo

Se houve no século XX um escritor que nunca cedeu ao cansaço e ao tédio, que conservou até o fim um apaixonado interesse pela vida e pelo conhecimento, que não cessou de se elevar a patamares cada vez mais altos de compreensão, até chegar, em seus últimos dias, às portas de uma autêntica sabedoria espiritual, esse foi Aldous Huxley. Como artista, é cheio de imperfeições. Nenhuma de suas obras dá a medida integral da riqueza da sua personalidade ou da solidez de seus recursos intelectuais. Ao contrário, cada uma delas, se tem o brilho de um achado literário premiado por um êxito retumbante, desperta em seguida a suspeita de ter sido apenas um golpe de sorte. Por isto Huxley, amado pelo público, foi com freqüencia visto com certo desdém pelos críticos eruditos (o nosso Otto Maria Carpeaux, por exemplo). Mas a crítica erudita julga livros e não almas. O homem Aldous Huxley, visto na perspectiva integral de sua vida e de suas obras, é bem melhor do que a crítica deste ou daquele livro em particular pode revelar. Nessa escala, o público o enxergou melhor que os críticos. Poucos homens de letras souberam honrar tão bem, pela seriedade de sua luta pelo conhecimento, o amor que o público lhes devotou.Símbolo e resumo de sua trajetória vital é a luta de décadas que ele empreendeu contra a cegueira. A doença que aos 17 anos reduziu sua visáo a aproximadamente um décimo do normal não foi para ele, como provavelmente o seria para muitos outros escritores numa era de egocentrismo e autopiedade, ocasião de especulações vãs sobre a maldade do destino. Foi a oportunidade de um mergulho nas fontes corporais e espirituais da percepção, mergulho que acabou por fazer dele o autor de reflexões epistemológicas bem mais interessantes do que muitas obras de filósofos acadêmicos sobre o assunto. Algumas dessas reflexões surgiram ao longo de sua experiência com os exercícios do Dr. Bates, um despretensioso oftalmologista norte-americano cujo sucesso na cura de Huxley veio a tornar célebre. O Dr. Bates era um inimigo dos óculos. Achava que todo olho doente tem momentos de sanidade que são estrangulados pela camisa-de-força de uma lente de grau fixo. Muito de sua técnica consistia apenas em restaurar no paciente a curiosidade visual e o amor à luz. Talvez ele nunca tenha atinado com a formidável importância filosófica de sua técnica. Mas Huxley, à medida que recuperava a visão graças aos exercícios de Bates, ia fazendo duas descobertas filosóficas fundamentais. A primeira delas estava sendo elaborada simultaneamente, sem que Huxleu o soubesse, pelo filósofo basco Xavier Zubiri, uma das mais poderosas mentes filosóficas deste e de muitos séculos. Segundo Zubiri, não existe aquela coisa kantiana de dados sensíveis brutos, caóticos, colhidos pelo corpo e sintetizados na mente segundo padrões a priori. A percepção humana é, inerentemente, percepção intelectiva ou, na fórmula zubiriana, “inteligência senciente”. Isto tapava, de um só golpe, o abismo que três século de idealismo filosófico haviam cavado entre conhecimento e realidade. “Realidade”, diz Zubiri, é o aspecto formal que o ser oferece à percepção humana. Não há uma “coisa em si” a ser apreendida para além da percepção, porque, precisamente, o que o ser oferece à nossa percepção é o seu “em si” e nada mais, ou, como diria Zubiri, aquilo que ele é “de suyo”, de seu, de próprio, de real. Huxley, que nunca ouviu falar de Zubiri (as obras do filósofo só vieram a difundir-se no mundo a partir da década de 70, após a morte de romancista), chegou, pela experiência pessoal da luta pela visão, a conclusões similares. A “arte de ver” (The Art of Seeing, 1943) não consistia no esforço interrogativo que, segundo Kant, equiparava o buscador do conhecimento ao juiz de instrução que inquire ativamente a testemunha em vez de deixá-la falar o que quer. Bem ao contrário, consiste numa aceitação passiva e gentil daquilo que as coisas, “de suyo”, queiram nos mostrar. A redução da libido dominandi intelectual às suas justas proporções fazia do ato de ver uma devoção contemplativa ante a realidade do mundo.A segunda descoberta filosófica de Huxley, no curso de seus exercícios ópticos, filia-o a uma tradiçao ainda mal conhecida no Ocidente de hoje, e praticamente desconhecida no mundo acadêmico do seu tempo. A natureza do mundo objetivo, nas suas experiências, revelava-se essencialmente como luz -- luz no sentido físico, sustentada, porém, desde o íntimo, pela luz espiritual. A ativação desta última, no sujeito cognoscente, despertava a sua contrapartida objetiva sob a forma da luz inteligível que se revelava nas coisas vistas, simultaneamente à sua revelação pela luz física. A meditação deste ponto remonta à “filosofia iluminativa” de Shihaboddin Sohrawardi (1155-91) filósofo persa cujas descobertas só encontraram, no Ocidente, um eco acidental e longínquo em observações casuais de Robert de Grosseteste (c. 1170-1253). Huxley soube algo de Sorawardi, anos depois, pois menciona-o de passagem em algum ensaio. Mas, na época em que fazia as experiências relatadas em The Art of Seeing, já estava mergulhado, sem saber, numa atmosfera inconfundivelmene sohrawardiana. Esses pontos já bastam para mostrar a intensidade filosófica do mundo interior de Aldous Huxley, o que o coloca num patamar intelectual bem superior ao da média dos romancistas do seu tempo. Mas a especulação vivenciada dos mistérios da percepção levou-o a algumas interessantes experiências no campo da técnica ficcional. Em “Contraponto” (1923), ele esboça a reconstituição da unidade de uma atmosfera emocional pela justaposição de detalhes aparentemente separados. Isso poderia fazer pensar, à primeira vista, na síntese kantiana. Mas, lida com mais atenção, cada cena do romance já traz em si, como em miniatura, o tônus emocional do conjunto. Não se trata, pois, da unificação intelectual de um significado a partir de detalhes insignificantes, mas sim de uma mesma realidade vista em dois planos: de perto e de longe. Mais que “dados” atomísticos kantiano, os episódios de “Contraponto” são mônadas de Leibniz, cada uma refletindo, desde o seu ângulo próprio, a forma do conjunto.Algo dessa técnica repete-se nas primeiras páginas do “Admirável Mundo Novo”. Flashes da produção de bebês in vitro, do doutrinamento de crianças para a cidadania padronizada, das diversões programadas como parte da disciplina civil, vão recompondo, aos poucos, a imagem global de um mundo do qual a liberdade de escolha foi excluída e onde as criaturas repousam confortavelmente na submissão hipnótica à ordem estatal perfeita. A sociedade futura aí descrita, que o autor situa no século VII d. F. (“depois de Ford”, ou às vezes “depois de Freud”) é aparentemente uma utopia, no sentido definido por Goethe: “Uma série de idéias, pensamentos, sugestões e intenções, reunidos para formar uma imagem de realidade, embora no curso ordinário das coisas dificilmente venham a se encontrar juntos.” Um universo assim construído teria uma constituição nitidamente kantiana: síntese mental de dados que, na realidade, se encontram dispersos. Mas essa não é, definitivamente, a estrutura do romance de Huxley. Nenhum dos elementos da Nova Ordem Mundial que ele nos apresenta pode ser concebido separadamente. Não se pode controlar administrativamente as emoções humanas sem a ajuda química (as pastilhas de soma), nem habituar as multidões à satisfação bovina de uma auto-hipnose permanente sem controle laboratorial de suas predisposições genéticas; nem, muito menos, fazer tudo isto ao mesmo tempo na escala limitada de um Estado nacional, sem o controle simultâneo de todo o globo terrestre. Mundialismo, controle genético, adestramento comportamental e intoxicação coletiva não são dados soltos para a mente construir com eles uma utopia: são órgãos solidários e inseparáveis de um mesmo e único sistema. Onde quer que apareça um deles, os outros o seguirão, mais cedo ou mais tarde. A lógica deste romance imita e condensa a lógica da História.Por isso mesmo o “Admirável Mundo Novo” é menos uma utopia, uma especulação sobre um futuro possível, do que a percepção imediata do nexo interna por trás de uma pluralidade de modas e escolas de pensamento que floresciam na época em que o romance foi escrito, e que constituem a matriz unificada, não somente do mundo possível no século VII d. F., mas do mundo em que vivemos hoje. Huxley, com efeito, nada inventou. Tudo o que fez foi perceber a unidade subjacente às idéias dominantes do seu tempo, que geraram nosso modo de existir atual. A atmosfera em que vivemos foi, de fato, determinada pelas concepções de Lenin e Ford, Margareth Mead e H. G. Wells, Malinowski e Pavlov. As referências, sutis ou abertas, a estes e a muitos outros “maîtres à penser” da década de 20 abundam nas páginas deste livro, que portanto pode ser lido menos como uma utopia no sentido goetheano do que como um diagnóstico da unidade de sentido por trás de tendências de pensamento que se ignoravam umas às outras no instante mesmo em que, às cegas, concorriam para erguer as paredes de um mesmo edifício: o edifício da Nova Ordem Mundial. O Sr. Wells, um autor menor que acabou por ser quase esquecido, é mencionado de passagem neste livro como um dos principais construtores da Nova Ordem. Passados oitenta anos, poucos observadores da realidade de hoje se dão conta de quanto ele contribuiu para formá-la, coisa que no entanto já estava óbvia para Aldous Huxley em 1931. O Sr. Wells, no livro “A Revolução Invisível” (1928), foi o primeiro a apresentar o projeto integral de uma Nova Ordem, que parece ter inspirado de algum modo os Srs. Clinton e Blair. Que feito de tão magna importância fosse obra de um autor que representa mais do que ninguém a mediocridade satisfeita do progressismo moderno, é coisa que não deve nos estranhar, pois a Nova Ordem, com seus clones, seus tribunais mundiais e seu controle da internet, não é outra coisa senão a mediocridade materializada em escala global -- o mundo onde o Sr. Wells se sentiria tão à vontade quanto Bouvard e Pécuchet. As contribuições menores não devem porém ser desprezadas. Nossas concepções atuais sobre o prazer sexual ilimitado como um direito a que o Estado deve assegurar o acesso igualitário das massas não teriam sido possíveis sem o relativismo antropológico de Margaret Mead. Se enquanto cientista ela foi tão precária quanto é minguado o talento literário do Sr. Wells, nada mais justo: somente a pseudociência e a pseudoliteratura podem gerar mundos. Sua função, como já dizia Karl Marx, não é a de compreender o real, mas a de mudá-lo. Mas as idéias não precisam ser inteiramente falsas para esse fim. Basta que sejam infladas para além de seus limites razoáveis. Pavlov, por exemplo, descreveu com acerto a psicologia dos cães. O homem não pode ser compreendido integralmente à luz da psicologia canina, mas pode ser integralmente manipulado desde a parte canina do seu ser, transformando-se em algo praticamente indiscernível de um cão, o que dará à psicologia de Pavlov, na prática, um alcance que ela jamais poderia ter em teoria. De modo análogo, todos podemos ser levados a comportar-nos como pacientes psicanalíticos, militantes proletários ou peças de uma linha de produção, dando uma espécie de “segunda realidade”, como diria Robert Musil, às ideologias de Freud, Marx e Henry Ford. Depois disso, contestar essas teorias se tornaria tão difícil quanto tentar provar o valor da vida a um suicida que, tendo saltado do décimo andar, já se encontrasse à altura do sexto ou quinto. A dificuldade que os personagens deste livro encontram para perceber a irrealidade do mundo social que as rodeia é dessa mesma índole: elas constroem essa irrealidade a cada instante, com suas próprias vidas, e se aprisionam nela no ato mesmo de tentar contestá-la em pensamento.A unidade maciça do pesadelo descrito neste livro não é um produto da mente, construido com indícios esparsos, um vulgar “silogismo imaginativo” eisensteiniano em que, dadas duas imagens reais, o espectador contrói uma terceira, fictícia, e nela crê. É antes a visão real da unidade da atmosfera cultural dos anos vinte e trinta condensada em imagens e projetada -- erroneamente -- num século futuro. Erroneamente, digo eu, porque o próprio Aldous Huxley, em 1959, confessava seu erro de datas: “As profecias feitas em 1931 estão para realizar-se muito mais depressa do que eu calculava”, afirmou ele em Brave New World Revisited, uma atemorizante coletânea de ensaios sobre lavagem cerebral, persuasão química, hipnopédia, influência subliminar e outras técnicas de manipulação comportamental que, previstas para o século VII d. F., já estavam prontas para o uso na segunda metade do século XX. Passado mais meio século, porém, já transcendemos a época das descobertas técnicas e entramos, em cheio, na da sua aplicação rotineira em escala mundial. Uma boa descrição parcial desse estado de coisas encontra-se no livro de Pascal Bernardin, Machiavel Pedagoge ou le Ministère de la Réforme Psychologique (Paris, Éditions Notre-Dame des Grâces, 1998), que analisa as técnicas educacionais hoje padronizadas em todo o mundo sob os auspícios de governos e de prestigiosos organismos internacionais. As conclusões do seu exame são duas. Primeira, a educação das crianças no mundo de hoje despreza a sua formação intelectual e se dedica quase que inteiramente ao adestramento comportamental dos perfeitos cidadãozinhos da Nova Ordem Mundial. Segunda: as técnicas usadas para esse fim pouco têm a ver com o que que se denominava tradicionalmente “pedagogia”, mas se constituem essencialmente de manipulação pavloviana. Que isso ocorra simultaneamente a experimentos de clonagem humana, à formulação de uma ética padronizada para abolir todas as diferenças culturais e religiosas, à instauração de um poder médico global incumbido de receitar e vetar condutas a pretexto de higiene e saúde, à criação de tribunais mundiais para impor à toda a humanidade o direito penal de Wells, Bouvard e Pécuchet -- nada disso é coincidência, nada disso é síntese mental de dados esparsos. É a unidade de um sistema de erros, cujas sementes Aldous Huxley identificou em 1931 e cujo crescimento ultrapassou, em velocidade, os seus mais sombrios diagnósticos.No entanto, o mundo em que vivemos ainda não se parece, no seu todo, com o Admirável Mundo Novo. A diferença principal é que neste os “selvagens”, isto é, as pessoas que rejeitavam a existência antisséptica na sociedade perfeita e continuavam presas de hábitos bárbaros como ler a Bíblia, rezar e educar seus próprios filhos em vez de entregá-los ao Estado, se encontravam isoladas geograficamente, vivendo em reservas a milhares de quilômetros dos centros civilizados. No mundo de hoje, elas vivem soltas nas grandes cidades, misturadas aos seres humanos normais que só acreditam nos noticiários da TV e que entregam não só seus filhos como também seus pais à guarda do Estado. Por isto a vida moderna não tem a uniformidade tediosa das cidades de Huxley. Mas isso não quer dizer que, no domínio da estrutura social, ao contrário do que acontece no da tecnologia, o cumprimento da profecia esteja atrasado. Nas últimas quatro décadas, a elite bem-pensante inventou meios tão eficazes de isolar psicologicamente, culturalmente e socialmente os indesejáveis, que separá-los geograficamente tornou-se uma despesa desnecessária. A presença de um crente nas altas cátedras universitárias ou nos cargos de destaque do jornalismo, por exemplo, tornou-se tão inconcebível, que todos os selvagens que poderiam ambicionar esses postos recuam espontaneamente para os bas-fonds da vida social, deixando o palco inteiramente à disposição dos bons cidadãos. A secretária de Estado Madeleine Albright foi até explícita: qualquer americano que contribuísse regularmente para uma igreja e se preparasse ativamente para o Juízo Final se tornariam um virtual candidato a ter sua vida vasculhada pelo FBI. As reservas de “selvagens” não estão nos confins da Terra como no romance. Elas estão entre nós.Nas suas últimas décadas de vida, Aldous Huxley adotou decididamente uma escala de valores “selvagem”. Mergulhou no estudo das literaturas sapienciais e místicas, adquirindo uma antevisão daquilo que Fritjof Shuonn viria a chamar “unidade transcendente das religiões”, tão diferente do ecumenismo burocrático de hoje quanto as visões de Sta. Teresa ou Jacob Boehme diferiam da leitura de uma circular da CNBB. Com isso, tornou-se estranho e incompreensível, simultaneamente, aos materialistas da linha Wells e aos paladinos de ortodoxias exclusivistas. Aventurou-se mesmo numa tentativa -- falhada -- de descobrir nas drogas alucinógenas a rota de fuga para fora da percepção padronizada. Mas a experiência fracassada não foi estéril. Se não abriu para quem quer que fosse “as portas da percepção”, despertou Aldous Huxley para a temível realidade da manipulação química do comportamento, que ele denuncia corajosamente em Brave New World Revisited, e para os aspectos falazes e ilusórios da democracia, que ele caricatura impiedosamente em seu último romance, A Ilha, espécie de contrapartida dialética do Admirável Mundo Novo.Da observação microscópica do mecanismo da percepção até a intuição global dos rumos da história humana, o olhar de Huxley jamais perdeu de vista a unidade do real e, em conseqüência, o senso da integridade humana, que tantos romancistas, seus contemporâneos, cedendo à suprema tentação, não fizeram senão dispersar numa poeira de estilhaços. Nenhum de seus livros dá conta integral da riqueza de sua experiência do mundo. Mas em nenhum deles está ausente a tensão entre o apelo unificante do alto e as brutais forças centrífugas que tentam dissolver a unidade da consciência para mais facilmente amoldá-la à mera uniformidade exterior de um mundo forjado. Voltar a si, reconquistar perenemente o senso da verdadeira unidade e, com isto, redescobrir a luz do espírito em seus reflexos no mundo exterior -- eis o sentido da vida e da literatura de Aldous Huxley. Poucos escritores, no século XX, souberam colocar a ocupação literária a serviço de finalidade tão alta e tão nobre. Por isto a obra de Aldous Huxley, malgrado seu múltiplos defeitos, sobreviverá. Ela tem o interesse permanente de tudo aquilo que se volta para “a única coisa necessária”.26/03/012. A IlhaOs críticos acusaram freqüentemente os personagens de Huxley de não ser propriamente seres humanos, mas apenas símbolos de idéias. Contra essa censura posso levantar de imediato três objeções:1) Mesmo que ela fosse certa, não bastaria para arrasar de vez a reputação de Huxley como ficcionista, de vez que crítica semelhante já se fez a Swift e Voltaire. 2) Ela não é propriamente uma censura, mas a definição mesma do gênero “sátira”, no qual se incluem, de algum modo (já veremos qual), as principais obras de Huxley. Não é possível satirizar os seres humanos naquilo que têm de pessoal e autêntico, mas só no que têm de exterior, de típico, de copiado e de mecânico.3) Mas as histórias de Huxley escapam mesmo às limitações intrínsecas do gênero satírico. É verdade que Lenina Crowne ou Bernard Trotsky, em O Admirável Mundo Novo, assim como Will Farnaby, Robert MacPhail ou o embaixador Bahu, em A Ilha, não são realmente pessoas de carne e osso: são encarnações das utopias, sonhos e ilusões da intelectualidade ocidental. Mas se malgrado essa sua origem puramente intelectual seus destinos nos interessam e nos comovem como os de gente de verdade, é pelo fato de que, no século XX, o poder enormemente ampliado da mídia cultural fez com que as idéias passassem a ter uma influência formadora mais direta e decisiva sobre os corações humanos. Símbolos, frases-feitas, emoções e trejeitos mentais criados pelos intelectuais fincaram raízes tão profundas no subconsciente das pessoas, que se tornaram, em muitos casos, indiscerníveis das reações pessoais autênticas. É olhar e ver: muitas personalidades em torno de nós são realmente, literalmente, traslados de modas intelectuais. Esses tipos só são cômicos e artificiais quando vistos do exterior, e nossa reação perante eles é ambígua: não conseguimos nem compartilhar de seus sentimentos ao ponto de sofrer por eles, nem desidentificar-nos deles o bastante para torná-los definitivamente cômicos. Pois todos nós, uns mais, outros menos, macaqueamos as modas culturais, e este é um destino inescapável do homem moderno: nem possuímos mais aquele fundo comum de valores e símbolos que permitia ao camponês da Idade Média ser ele mesmo justamente porque era igual a todos, nem nos tornamos tão prodigiosamente individualizados que possamos inventar nossa própria linguagem. A única autenticidade possível ao homem moderno é um arranjo mais ou menos pessoal de modelos mais ou menos copiados.É nessa zona indistinta entre o discurso coletivo e a emoção autêntica, entre a macaquice intelectual e a vida pessoal efetiva que Huxley colhe seus personagens. Daí sua maior originalidade como ficcionista – sua capacidade de fazer o leitor vivenciar o jogo das idéias estereotipadas como se fosse um drama humano de verdade. Por isso suas obras não podem rotular-se categoricamente como sátiras, já que participam, a um tempo, da sátira e do drama: sátira das idéias, drama dos erros e sofrimentos humanos que essas idéias geraram ao transformar-se em ações. É precisamente essa visão intermediária entre a sátira e o drama que o habilita a sondar com olhar profético o futuro que se gera no ventre das idéias. Cada um de seus romances é como aquele fantasma do poema de Heine que acordava um homem de madrugada e, de espada em punho, o ameaçava: “Eu sou a ação dos teus pensamentos.”Muito do que Aldous Huxley escreveu é a dramatização satírica das idéias que se tornaram vida pessoal e tragédia pessoal entre os intelectuais midiáticos, aqueles seres meio cultos, meio ignorantes, que desfrutam do privilégio maior da mediocridade -- falar a linguagem média -- e que por isto dão o tom dos debates públicos, encarnando a personalidade das épocas. Essas criaturas são as testemunhas principais que o historiador das idéias interroga. Por exemplo, quem queira conhecer a mentalidade do século XVIII não irá sondar as profundezas abissais da ciência de Leibniz, mas deslizar sobre as superfícies brilhantes de Voltaire e Diderot. Os grandes espíritos não pertencem propriamente à sua época: uma parte do seu ser está mergulhada num passado imemorial, a outra projeta-se num futuro inalcançável, e só uma parcela ou recorte deles é visível a seus contemporâneos. Mas a mente do intelectual médio é o ponto de intersecção dos horizontes de consciência da sua época: o que aparece na sua tela interior é aquilo que todos vêem ao mesmo tempo, a coincidência de todos os recortes, a interconfirmação de todas as percepções e de todas as cegueiras. Por isto seu discurso é tão bem recebido por seus contemporâneos, e por isto é tão fácil, das suas palavras, deduzir o que “o público” pensava.O intelectual médio é ao mesmo tempo o porta-voz e o eco das modas culturais. Mesmo quando as critica, não vai além delas, limitando-se a opor uma moda a outra moda, como aqueles que, hoje em dia, opõem ao socialismo a utopia neoliberal, ou vice-versa, sem ter a mínima idéia do parentesco que os une.Huxley era um ouvido especialmente atento às conversações dos intelectuais médios, das quais ele não apenas captava com facilidade o “espírito da época”, mas inferia as mais espantosas e acertadas conclusões sobre o rumo que as coisas iriam tomar se aquelas idéias, em vez de esgotar-se como puras futilidades de salão, fossem levadas à prática como modelos do mundo futuro. O Admirável Mundo Novo é o mundo que teria resultado – e que de certo modo resultou – da aplicação das modas intelectuais da década de 30. A Ilha é o mundo criado pelas utopias psicoterapêuticas e orientalistas dos anos 50-60. Aldous Huxley morreu antes de que essas idéias tomassem corpo na cultura da “New Age” e, partindo das esperanças utópicas de um novo mundo de sanidade e autoconhecimento, desembocasse na tragédia mundial das drogas, das seitas escravizadoras, das experiências psíquicas autodestrutivas. Não obstante, ele captou antecipadamente a loucura por trás de tudo isso, e é precisamente essa antevisão que dá o tema deste romance. Publicado em 1963, este livro foi lido como uma espécie de antítese do Admirável Mundo Novo. Enquanto o romance de 1932 trazia o retrato de uma sociedade opressiva e mecanizada, da qual toda espontaneidade humana tinha sido extirpada em benefício da ordem e da produtividade, a ilha de Pala era como que a materialização dos sonhos de liberdade da geração flower power: amor livre, religiosidade sem dogmas, respeito às diferenças individuais, incentivo à expressão das emoções, tudo num ambiente ecológico de reverência pela natureza. Sublinhava essa interpretação o fato de que a utopia fosse, no capítulo final, brutalmente destruída pelos tanques da vizinha ilha de Rendang-Lobo, encarnação de tudo o que a juventude dos anos 60 mais odiava: industrialismo, militarismo, religião tradicional, lei e ordem.Compreendido assim, A Ilha não era senão a tradução ficcional de lugares-comuns da retórica esquerdista da época, mista de “New Age” e “New Left”. Daí o imenso sucesso do livro. Ele parecia dizer tudo o que a geração mais pretensiosa de todos os tempos queria ouvir. Mesmo a derrota da utopia, em vez de ter um efeito deprimente, parecia exaltá-la até às nuvens: Pala fôra destruída por ser boa demais para este mundo, como Che Guevara, derrotado pelo mais pífio exército sul-americano, transcendia no mesmo ato os julgamentos humanos e subia aos céus como um Ersatz comunista de Jesus Cristo. Êxitos de livraria baseados em equívocos de interpretação não são raros na história da literatura. Na verdade, A Ilha é o mais temível inquérito sobre o auto-engano da geração que o aplaudiu. No ambiente de entusiasmo utópico da época, seria impossível que os leitores o compreendessem. Isso teria exigido deles um realismo cruel, que mesmo à distância de quatro décadas ainda parece difícil de suportar, tão contaminados das ilusões e mentiras dos anos 60 permanecemos hoje. Daí que, deslizando sobre a superfície da narrativa, quase todos os leitores deixassem escapar os detalhes mais importantes, nos quais se esconde o sentido mesmo da última lição de um sábio.Em primeiro lugar, a destruição de Pala não vem do exterior. É o próprio príncipe herdeiro, Murugan, quem atrai os estrangeiros para ajudá-lo no golpe militar destinado a romper o equilíbrio do paraíso agrícola e colocar o país, pela força, na modernidade industrial. Os ideais da “geração Woodstock”, com efeito, apenas usavam a linguagem do primitivismo agrícola como veículos de expressão de seu ódio à sociedade industrial, mas essa revolta era, ela própria, um fenômeno da intelectualidade urbana e universitária, e supunha uma dose de liberdade de expressão e meios de comunicação que seriam inconcebíveis em qualquer sociedade agrícola. Quando Murugan acusa os governantes de Pala de “conservadores e reacionários”, ele põe o dedo na ferida: os ideais que produziram Pala jamais poderiam ter surgido numa economia como a de Pala. A utopia não é destruída do exterior, mas explodida desde dentro, pela sua autocontradição congênita. Em segundo lugar, os golpistas, tão parecidos com os militares do Terceiro Mundo nos seus métodos de modernização autoritária, nada têm de conservadores e tradicionalistas na sua ideologia. Murugan, bisneto do Velho Rajá, o fundador de Pala e autor do livro sapiencial em que se inspira o regime da ilha, acaba se voltando contra as tradições locais por influência de sua mãe, a rani Fátima, a qual durante sua formação cultural na Europa recebera a influência dos ensinamentos teosóficos de Helena Blavatsky, tornando-se devota dos “Mestres do Astral”, especialmente um tal Koot-Hoomi -- figura inconfundivelmente diabólica segundo todos os cânones da religião tradicional -- , em cima de cujas concepções se forma a aliança entre a família real de Pala e os militares de Rendang-Lobo. Ora, teosofismo e mensagens de Koot-Hoomi são elementos inconfundíveis da própria ideologia “New Age”. Embora já um tanto velhos na época, foram reaproveitados na onda geral de orientalismo pop com que o movimento dos jovens atacava e corroía as bases cristãs da sociedade Ocidental. Os militares de Rendang-Lobo também não são, de maneira alguma, “a direita”. Estão ansiosos para fazer negócios com a Standard Oil só para poder comprar armas do bloco soviético e dar prosseguimento ao seu sonho macabro de “revolução permanente”. Seu chefe, o Cel. Dipa, é uma espécie de Chavez avant la lettre. Seu modernismo revolucionário representa a outra face da ideologia “jovem” dos anos 60: o lado brutal e sanguinário personificado pelos Black Panthers, por Ho-Chi-Minh e Fidel Castro. Pala não é destruída por seus inimigos, mas pela contradição interna da mais mentirosa ideologia de todos os tempos, a ideologia da esquerda norte-americana dos anos 60, que pretendia encarnar o espírito de “paz e amor” ao mesmo tempo que espalhava no mundo “um, dois, três, muitos Vietnãs”. Ainda mais significativo é que a origem das concepções utópicas do regime de Pala remontasse à fusão de vagos remanescentes do budismo tântrico com as idéias de evolucionismo biológico trazidas, no século passado, por um médico escocês, meio sábio, meio charlatão, que adquirira prestígio na ilha curando uma misteriosa doença de seu governante por meio do “magnetismo animal”. Essa mistura de budismo heterodoxo, evolucionismo e magnetismo compõe a fórmula inconfundível do teosofismo de Madame Blavatsky. Assim, a raiz do utopismo anárquico de Pala e do modernismo autoritário de seu príncipe golpista é, rigorosamente, a mesma. Para tornar as coisas ainda mais estranhas, o teosofismo de Blavatsky foi, notoriamente, um instrumento usado pelo imperialismo inglês para corroer as tradições religiosas autênticas das nações orientais e torná-las mais vulneráveis à dominação cultural estrangeira por meio de um entorpecente pseudo-espiritual fabricado em Londres por uma vigarista russa. [1] Pelo lado da ideologia palanesa, portanto, o lixo ancestral não é menos fedorento que o teosofismo explícito de Rendang-Lobo. Já no segundo capítulo do livro, o náufrago Will Farnaby, traumatizado pelo perigo recente, é curado de seus males pelo método freudiano da ab-reação no curso de uma psicoterapia improvisada... por uma garota de nove anos. Mary Sarojini MacPhail, a garota, neta do atual guru médico da ilha, resume na sua pessoinha os princípios de educação e ética ali vigentes: são os princípios do sincerismo, do “botar para fora”, que os “grupos de encontro” e as técnicas psicoterápicas de “sensibilização” e “liberação” disseminaram no mundo a partir de Esalen, Califórnia, e que marcaram inconfundivelmente a atmosfera dos anos 60. O festival de experimentos psíquicos e “liberações” desembocou no império mundial dos traficantes de drogas e na transformação da delinqüência juvenil (e infantil) numa catástrofe global de proporções incontroláveis. Na época, porém, prometia um novo mundo de espontaneidade e sanidade. Todas as crianças de Pala são versadas em “auto-expressão”, aquela confissão simplória e cínica dos próprios maus sentimentos que, teoricamente, os tornaria inofensivos. O fato é que a “auto-expressão”, ensinada em grupos-de-encontro por psiquiatras e psicoterapeutas “libertadores” nos conventos católicos, suscitou entre as monjas uma epidemia de lesbianismo e de casos amorosos com seus terapeutas, levando praticamente à destruição de várias ordens religiosas. De braços dados com o pseudo-orientalismo, a “libertação” psicoterápica abriu caminho para que milhões de jovens abandonassem o cristianismo e se entregassem às mais tirânicas manipulações psíquicas nas mãos de seitas delinqüenciais como “Love Family”, que, em nome da expressão espontânea das emoções, obrigava crianças de quatro anos de idade a submeter-se, junto com seus pais, à prática de sexo grupal. A imensidão dos danos psicológicos trazidos a essa geração jamais poderá ser medida exatamente. As tristezas e as vergonhas acumuladas são demasiado profundas para vir à tona. Documentos aterrorizantes acumulam-se, em pilhas, nos milhares de clínicas especializadas em tratamentos de egressos de seitas, sobretudo ao longo da Costa Oeste americana -- o lugar onde nasceria, segundo a promessa da época, a nova civilização de sanidade, paz e amor. [2] Os efeitos terrificantes, porém, não nasceram do mero acaso. Fruto e raiz têm sua continuidade lógica. Os “grupos-de-encontro” nasceram da pesquisa militar sobre guerra psicológica e controle comportamental. Um de seus pioneiros, Kurt Lewin, já na década de 40 havia chegado à conclusão de que a pressão sutil e disfarçada do grupo era o meio mais efetivo de produzir mudanças de comportamento. A lição foi bem aprendida por Carl Rogers, Fritz Perls, Abraham Maslow e outros criadores dos “grupos-de-encontro” da década de 60. A “liberação”, em suma, não passava de “engenharia do consentimento”. Lewin e seus sucessores haviam descoberto um tipo de controle comportamental infinitamente mais eficiente e irresistível do que todas as técnicas descritas no Admirável Mundo Novo. Como admitiu um dos praticantes do método, Robert Blake, ex-aluno de Lewin no Tavistock Institute de Londres (a principal academia inglesa de guerra psicológica), “não importa quanto o orientador desses grupos tente ser não-diretivo, ele será ainda sutilmente ditatorial e até mais ditatorial (por causa da sua sutileza) do que o mais rígido adestrador, porque todo o controle está escondido”. [3] Por uma coincidência que neste contexto adquire as dimensões de um símbolo, Blake dirigiu um desses grupos justamente na Standard Oil – a empresa com a qual o príncipe herdeiro Murugan está louco para fazer negócios.Após presenciar uma sessão de “educação para o amor” das crianças de Pala, Will Farnaby, o visitante trazido pelo naufrágio, protesta: “Isto é puro Pavlov!”. O instrutor, com aquele ar beatífico de tantos lavadores de cérebros da década de 60, responde: “Pavlov usado exclusivamente com bom propósito. Pavlov para a amizade, para a confiança, para a compaixão.”Tanto pelas suas origens blavatskianas quanto pelos métodos de dirigismo sutil, a ideologia palanesa é irmã gêmea do autoritarismo de Rendang-Lobo. A Ilha não é a tragédia de um paraíso de liberdade destruído pela invasão de militares malvados: é a tragédia da autodestruição de uma utopia intrinsecamente má e mentirosa envolta em belas palavras.No momento culminante da narrativa, Will Farnaby, finalmente rendido aos encantos da “religião sem dogmas” dos palaneses, resolve experimentar a moksha, a erva alucinógena ritual que, em vez de precipitar somente o consumidor num estado de apatetado bem-estar como o soma do Admirável Mundo Novo, lhe abriria as portas do conhecimento transcendental. Nos primeiros instantes, Will “vê a luz”, ou pelo menos pensa que vê. Mergulha num estado de beatitude indescritível e supõe ter conhecido o próprio Deus. De repente, a visão se transfigura. Abrem-se as portas do inferno: vermes horrendos aparecem misturados à figura de Adolf Hitler que gesticula e berra. A visão de Will mostra a verdadeira natureza da religião palanesa: uma religião de “experiências psíquicas”, incapaz de transcender a dualidade cósmica e elevar-se ao reino da eternidade. É a religião dos “grupos-de-encontro”, o substitutivo postiço que uma estratégia política oportunista quis substituir ao cristianismo. Tão logo Will emerge do transe, ele ouve os primeiros tiros do exército invasor: é a mentira essencial de Pala que se desfaz ao mesmo tempo que a falsa visão espiritual. Poucos livros foram tão fundo na compreensão do auto-engano congênito da cultura contemporânea. Perto da pedagogia palanesa da ilusão, as técnicas de controle social do Admirável Mundo Novo parecem ingênuas e rudimentares, assim como perto da engenharia comportamental dos anos 60 o totalitarismo explícito da década de 30 parece coisa de orangotangos. O diagnóstico impiedoso do neototalitarismo mental dos anos 60 não pôde ser compreendido por seus contemporâneos. Eles estavam embriagados na mentira nascente, e a antevisão de Huxley passou léguas acima de suas cabeças. Mas, hoje, vivemos no mundo criado por aqueles malditos “jovens idealistas” dos anos 60. As técnicas de controle social e engenharia do consentimento já não são experiências limitadas, efetuadas na privacidade de grupos-de-encontro: são o dia a dia das escolas públicas, onde nossos filhos se encontram à mercê daquilo que Pascal Bernardin chamou “ministério da reforma psicológica”. [4] Tal como Mary Sarojini MacPhail, cada criança, submetida à pressão sutil do grupo, aí adota alegremente as condutas desejadas, sem ter a mínima idéia de possíveis alternativas. Nos EUA, os resultados da adoção maciça dessas técnicas no ensino já são patentes: os índices assustadores de consumo de drogas e a criminalidade infantil nas escolas públicas levam muitos pais a preferir educar seus filhos em casa, enquanto a Prefeitura de Nova York, admitindo-se incapaz de controlar a violência das crianças, privatiza suas escolas como quem entrega um fardo superior às suas forças. No Brasil, esse processo ainda está no começo, mas basta ler os “Parâmetros Curriculares Nacionais” do Ministério da Educação para perceber que a engenharia de comportamento aí predomina amplamente sobre a formação intelectual e a instrução moral honesta. O espírito dos “grupos de encontro” dos anos 60 tomou conta da pedagogia universal, firmemente decidido a “libertar” as crianças do legado da civilização cristã. Quando a “libertação” mostrar sua outra face, quando Pala revelar sua identidade com Rendang-Lobo, haverá choro e ranger de dentes. Mas, como aconteceu com a geração de 60, nenhum dos autores da tragédia reconhecerá suas culpas: cada um deles se proclamará um idealista traído pelos rumos imprevisíveis da História e, revigorado pelo sentimento de inocência, tirará da cartola um novo projeto de “mundo melhor”.Aldous Huxley escreveu este livro para nos advertir da culpa monstruosa que se oculta por trás da inocência dos idealistas.22/4/01[1] V. Peter Washington, O Babuíno de Madame Blavatski, trad. Antônio Machado, Rio, Record, 2000, assim como René Guénon, Le Théosophisme. Histoire d’une Pseudo-Réligion, Paris, Éditions Traditionnelles, 1929 (reed. 1978).[2] Um documentário impressionante da devastação psíquica resultante dos experimentos psíquicos da década de 60 encontra-se em Flo Conway e Jim Siegelman, Snapping. America’s Epidemic of Sudden Personality Changes. New York, Lippincott, 1980.[3] Cit. em E. Michael Jones, Libido Dominandi: Sexual Liberation and Political Control, South Bend, St. Augustine’s Press, 1999.[4] V. Pascal Bernardin, Machiavel Pédagogue ou le Ministère de la Réforme Psychologique, Paris, Éditions Notre-Dame des Grâces, 1995.


Home - Informações - Textos - Links - E-mail