domingo, 9 de setembro de 2007

LOPARIC Esboço do paradigma winnicottiano

ESBOÇO DO PARADIGMA WINNICOTTIANO*

Zeljko Loparic
UNICAMP/PUCSP

Resumo: O objetivo principal do presente artigo é apresentar uma visão unificada da contribuição de Winnicott à psicanálise. A Parte I (seções 1-4) começa mostrando que, de acordo com certos comentadores renomados, Winnicott introduziu uma mudança paradigmática na psicanálise. A fim de mostrar que essa mudança pode ser interpretada como uma Gestalt switch paradigmática no sentido de Th. S. Kuhn, faz-se uma apresentação panorâmica da teoria kuhniana da ciência e, em seguida, uma reconstrução do paradigma edipiano ou triangular de Freud. Na Parte II (seções 5-13), é mostrado que, já nos anos 20, Winnicott constatou a existência de anomalias insuperáveis no paradigma edipiano e, por essa razão, iniciou a pesquisa que poderia ser chamada de revolucionária, no sentido de Kuhn, buscando um novo quadro geral para a psicanálise. Essa pesquisa terminou com a elaboração, especialmente na última parte da vida de Winnicott, do paradigma alternativo “bebê-no-colo-da-mãe”. Esse paradigma é descrito com certos detalhes, especialmente a relação paradigmática dual bebê-mãe e a teoria-guia de amadurecimento pessoal. As observações finais dizem respeito à herança winnicottiana e ao futuro da psicanálise.
Palavras-chave: paradigmas, Freud, paradigma edipiano, Winnicott, paradigma “bebê-no-colo-da-mãe”.

Abstract: The main objective of this paper is to present a unified view on Winnicott’s contribution to psychoanalysis. Part I (Sections 1-4) starts by recalling that, according to some distinguished commentators, Winnicott introduced a paradigm change in psychoanalysis. In order to show that this change can be interpreted as a “paradigm switch” in the sense of Th. S. Kuhn, I give an account of the Kuhnian view of science and offer a reconstruction of the Freudian Oedipal, Triangular or “Toddler-in-the-Mother’s-Bed” Paradigm. In the Part II (Sections 5-13) it is shown that already in the 20’s Winnicott found unsupportable anomalies in the Oedipal paradigm and, for that reason, started what may be called revolutionary research for a new framework of psychoanalysis. This research ended by Winnicott producing, especially during the last period of his life, an alternative Dual or “Baby-on-the-Mother’s-Lap” Paradigm. This new paradigm is described in some detail, especially the paradigmatic dual mother-baby relation and Winnicott’s dominant theory of maturation. Final remarks are dedicated to questions of Winnicott’s heritage and the future of psychoanalysis.
Key words: paradigm, Freud, Oedipal Paradigm, Winnicott, “Baby-on-the-Mother’s-Lap” Paradigm


1. Introdução

O principal objetivo deste trabalho é apresentar uma visão unificada da contribuição de Winnicott à psicanálise. Esse autor vem sendo reconhecido já há algum tempo como uma das grandes figuras da história dessa disciplina. Há, inclusive, quem o declare “a mente mais brilhante da psicanálise depois de Freud” (André Green). No entanto, apesar de seu crescente prestígio entre os especialistas, Winnicott é muito pouco conhecido fora dos círculos psicanalíticos, e, mesmo nas sociedades psicanalíticas, seu trabalho está longe de receber a devida atenção. Estudos filológicos, históricos e conceituais sistemáticos de seus escritos são muito raros, e a pesquisa feita atualmente sobre a sua obra nem de longe se compara ao trabalho realizado sobre os textos de Freud. Tal situação vem mudando nos últimos tempos, particularmente na América Latina, onde Winnicott tem sido o autor mais citado depois de Freud. Infelizmente, porém, ser citado não significa necessariamente ser realmente estudado e compreendido.
Minha ênfase neste trabalho não recairá sobre esta ou aquela contribuição (dentre as muitas feitas) de Winnicott à psicanálise, mas sobre a própria natureza dessa contribuição. Tentarei alcançar esse objetivo através de uma análise conceitual baseada, em grande parte, no exame do desenvolvimento histórico de suas idéias. Ele próprio já havia recomendado a abordagem histórica para a compreensão de seus pontos de vista. Em Natureza humana, após explicar algumas de suas idéias sobre a elaboração imaginativa das funções corporais, acrescentou:

O leitor deve formar uma opinião pessoal sobre essas questões, depois de aprender, tanto quanto possível de modo histórico, o que foi pensado, que é a única forma de uma teoria, num dado momento do seu progresso, mostrar-se inteligível e interessante. (1988, p. 42; grifo meu)

“Interessante”, aqui, significa, a meu ver, tanto merecedor de atenção “do ponto de vista do leitor” quanto importante “do ponto de vista teórico”. O mesmo se aplica, obviamente, a qualquer tentativa de compreender outros pontos da teoria winnicottiana, assim como da psicanálise em geral:

Os leitores habituados à literatura psicanalítica poderão ficar impacientes se considerarem um enunciado da teoria psicanalítica e o tratarem como se fosse uma formulação final que não deverá jamais ser modificada. A teoria psicanalítica está em permanente desenvolvimento, e deve desenvolver-se num processo natural e um tanto semelhante às condições emocionais do ser humano que esteja sendo estudado. (1988, p. 46; grifo meu)

Seria muito tentador desenvolver essa visão winnicottiana das origens da atitude científica e da acumulação do conhecimento científico como “processo natural”. No entanto, não pretendo levar tal possibilidade adiante, pois ela me conduziria para longe do meu objetivo principal neste momento. Ao invés disso, limitar-me-ei a aplicar um modelo já existente do desenvolvimento natural da ciência, aquele elaborado por Thomas S. Kuhn.
Há uma razão essencial para recorrer a Kuhn no presente contexto: tanto ele quanto Winnicott foram fortemente influenciados por Darwin. Winnicott deve a Darwin a idéia de que “os seres vivos poderiam ser estudados cientificamente, com o corolário de que as lacunas no conhecimento não deveriam nos assustar” (1996a, p. 7). Kuhn, por sua vez, aprendeu com o biólogo inglês a ver, no desenvolvimento da ciência, a luta entre paradigmas rivais pela sobrevivência na comunidade científica, sendo o objetivo final dessa luta não algo como uma verdade última, mas a eficiência temporariamente maior do conhecimento científico na resolução de problemas. Esse objetivo, tão pouco sólido, é alcançado através de dramáticas transformações sofridas pelas visões de mundo científicas estabelecidas ou, mais tecnicamente, por mudanças na Gestalt de paradigmas científicos, geralmente chamadas de “revoluções científicas”.
Seguindo os passos de Kuhn, falarei na mudança de paradigma introduzida por Winnicott na disciplina psicanalítica. Isto me exigirá uma descrição do paradigma anterior, o freudiano, o qual tornou possível um período inicial de “pesquisa normal” em psicanálise, bem como o surgimento das anomalias que provocaram uma crise, em conseqüência da qual deflagrou-se a pesquisa revolucionária de Winnicott. Tal pesquisa resultou – e esta será a minha tese principal – na introdução, por Winnicott, de um novo paradigma para a psicanálise, ou seja, na formulação de novos problemas e de um novo arcabouço conceitual que, assim esperava ele, o capacitaria a resolver as anomalias que o preocupavam, bem como abriria perspectivas mais amplas para a pesquisa psicanalítica como um todo. Por fim, abordarei a questão de se é legítimo ou não falarmos de algo como uma revolução winnicottiana da psicanálise. Minha conclusão será que Winnicott foi realmente um pensador revolucionário, tendo aberto um novo caminho para a pesquisa e a prática nesse campo, e que ele próprio realizou muitas dessas pesquisas, sem jamais pretender que seu arcabouço alternativo ou seus resultados constituíssem “formulações definitivas”.
Não sou o primeiro a falar de um paradigma winnicottiano. Em 1989, Judith Hughes empreendeu a tarefa de apontar os “paradigmas que constituem a teoria psicanalítica” descrevendo, primeiro, os “paradigmas freudianos”, e procurando, em seguida, desvendar as suas “transformações” nas obras de Klein, Fairbairn e Winnicott.
Um ano antes, em 1988, Adam Phillips abordou a contribuição de Winnicott nessa mesma perspectiva. Afirmou ele, sem as ambigüidades que prejudicam tantas outras tentativas, que Winnicott introduziu “importantes inovações” na prática e na técnica da psicanálise, que representam, apesar dos “espertos” disfarces, “rupturas radicais em relação a Freud”. A ruptura mais importante consiste no fato de Winnicott “derivar tudo, em sua obra, inclusive uma teoria das origens da objetividade científica e uma revisão da psicanálise, do seu paradigma da relação mãe-bebê em desenvolvimento” (1988, p. 5, grifo meu). Para Winnicott, diz Phillips, o relacionamento mãe-bebê tornava-se o “modelo primário da situação psicanalítica”, e a principal “fonte de analogias em seu trabalho” (1988, p. 87, grifo meu). Eis aqui um exemplo entre os muitos apresentados por Phillips:

Mas enquanto para Freud a psicanálise era essencialmente uma “cura pela palavra”, para Winnicott o relacionamento mãe-bebê, no qual a comunicação é relativamente não verbal, transformou-se num paradigma do processo analítico, e isto mudou a função da interpretação no tratamento psicanalítico. (Phillips 1988, p. 138)

Guiado pelo paradigma mãe-bebê, Winnicott foi conduzido a novas questões, e em seguida a novos resultados. Exemplos de tais questões, “raramente levantadas na teoria psicanalítica”, são as seguintes: de que precisamos para nos sentirmos vivos ou reais? de onde vem o sentimento (sense), quando o temos, de que nossas vidas valem a pena? Winnicott abordou essas questões, continua Phillips, vinculando a “observação de mães e bebês” aos “insights derivados da psicanálise” (1988, pp. 5-6). Mas não fez apenas isto. Winnicott também enriqueceu a psicanálise com novos insights fundamentais que se revelaram incompatíveis com os de Freud, visto que “raramente ele [Winnicott] os remetia ao lugar do erótico na vida adulta”. Para Winnicott, o “ponto crucial da psicanálise” era a “vulnerabilidade inicial do bebê dependente” dentro da relação dual com a mãe, e não o “complexo de Édipo – a relação de três pessoas”. Enquanto Freud, partindo da situação edípica, estava interessado na “luta dos adultos com desejos incompatíveis e inaceitáveis”, que colocariam em perigo “suas possibilidades de satisfação”, Winnicott, partindo do relacionamento caracterizado pela dependência (quase) total, tratava essas possibilidades como “parte de um problema mais amplo das possibilidades do indivíduo de ter autenticidade pessoal, que ele [Winnicott] viria a chamar de “sentir-se real’’ (1988, p. 7). Trabalhando dessa maneira, e “desconsiderando a metapsicologia de Freud” (1993, p. 43), Winnicott desenvolveu, durante a década de 40, “uma teoria do desenvolvimento que seria um poderoso rival para as teorias tanto de Freud quanto de Klein” (1988, p. 97).
Concordo, em essência, tanto com a abordagem de Hughes quanto com a de Phillips, cujo livro constitui de fato a mais lúcida exposição geral das idéias de Winnicott, em inglês, de que eu tenho conhecimento. O que gostaria de acrescentar é, primeiro, uma exposição mais sistemática e mais precisa dos elementos essenciais constitutivos do paradigma de Winnicott e, em segundo lugar, uma análise do caminho por ele percorrido em busca desses elementos. Em essência, espero poder produzir uma imagem mais acurada da contribuição de Winnicott, bem como de seus vínculos com as posições de seus grandes predecessores, e assim oferecer um esquema para a pesquisa futura sobre este tópico.
Para esse fim usarei, como assinalei há pouco, o termo “paradigma” não apenas no sentido comum de um modelo a ser seguido, como aparentemente o fazem Hughes e Phillips, mas no sentido mais técnico definido por Thomas S. Kuhn em seu livro A estrutura das revoluções científicas (2ª edição, 1970; tr. br. 2000). Tomarei também emprestado o ponto de vista geral de Kuhn sobre a pesquisa científica e o desenvolvimento da ciência.

2. A ciência empírica segundo Kuhn

Para Kuhn, a ciência normal e cotidiana é uma atividade voltada para a resolução de problemas e guiada por um paradigma. Os problemas científicos se parecem com quebra-cabeças, no sentido de serem pensados como tendo uma solução garantida no interior do referencial teórico estabelecido (2000a, p. 60). Problemas socialmente importantes passam a ser científicos somente após terem sido transformados em quebra-cabeças, a sua solução dependendo apenas da engenhosidade dos que foram treinados no paradigma. Os cientistas não têm a intenção e mesmo recusam-se a enfrentar todo e qualquer problema. O “cientificismo”, o pensamento de que a ciência pode resolver todas as questões importantes para o gênero humano, constitui um ponto de vista filosófico muito especial a respeito da ciência, e pouco tem a ver com o que os cientistas na verdade consideram suas metas.
Os paradigmas pressupostos na solução científica dos quebra-cabeças são de dois tipos. Em primeiro lugar estão os exemplos aceitos da prática científica real, que fornecem “modelos dos quais brotam tradições coerentes particulares da pesquisa científica” (2000, p. 30, grifo meu). No Posfácio à segunda edição de seu livro, Kuhn denomina esses modelos aceitos de “exemplares”, significando “as soluções concretas de problemas que os estudantes encontram desde o início de sua educação científica” (p. 232). Em segundo lugar, os paradigmas são “compromissos conceituais, teóricos, instrumentais e metodológicos” que guiam a pesquisa científica (p. 65). No Posfácio, Kuhn oferece uma análise mais detalhada desse segundo conceito de paradigma, especificando que seus componentes principais são generalizações empíricas que servem de guias, modelos ontológicos do objeto de estudo, procedimentos heurísticos autorizados (analogias e metáforas preferidas ou permissíveis) e, finalmente, valores ou normas que definem a ciência praticada por determinados grupos e que proporcionam a seus membros um sentimento de comunidade (2000, pp. 229-32). Os exemplares e as constelações de compromissos, tomados em conjunto, constituem a “matriz disciplinar” de uma disciplina científica.
Os exemplares são os mais importantes. Para começar, a ciência não é aprendida pela familiarização com enunciados verbais de leis e regras, mas através do ensino de como novos problemas podem ser vistos à luz dos exemplares: “Esse gênero de aprendizado não se adquire exclusivamente através de meios verbais. Ocorre, ao contrário, quando alguém aprende as palavras, juntamente com exemplos concretos de como funcionam na prática; a natureza e as palavras são aprendidas simultaneamente” (2000, pp. 236-7). Ao dizer que aprendemos “a natureza e as palavras” ao mesmo tempo, Kuhn dá a entender que grupos de cientistas, utilizando paradigmas diferentes, vivem, em certo sentido, em mundos diferentes, onde usam a linguagem de maneira essencialmente diversa. Isto, por sua vez, leva à incomensurabilidade dos enunciados teóricos e à ausência de critérios supraparadigmáticos de verdade e interpretação: a fim de que seja possível interpretar um enunciado, é preciso que, em primeiro lugar, sejamos capazes de ver a que este se refere, e isto exige que tenhamos o paradigma que permita ver este caso. A interpretação verbal, sendo “um processo deliberativo através do qual escolhemos entre alternativas, algo que não podemos fazer quando se trata da própria percepção” (p. 240), vem sempre em segundo lugar. O conhecimento aprendido através de exemplos paradigmáticos não é “explícito”, e sim “tácito”.
A mudança de paradigmas para ver o mundo também é, inicialmente, um processo tácito, não intencional e mesmo inconsciente. Assemelha-se a mudanças da Gestalt, que ocorrem “subitamente” e “involuntariamente”, e sobre as quais “não temos controle algum” (pp. 145 e 240). A característica principal das mudanças da Gestalt, que constituem o “cerne do processo revolucionário” (p. 251), é a “mudança de certas relações de semelhança” (p. 200), que por seu turno implica em mudanças no uso da linguagem. Escreve Kuhn:

Objetos que antes estavam agrupados no mesmo conjunto passam a agrupar-se em conjuntos diferentes e vice-versa. [...] Visto que a maior parte dos objetos continua a ser agrupada, mesmo quando em conjuntos alterados, os nomes dos grupos são em geral conservados. Não obstante, a transferência de um subconjunto é, de ordinário, parte de uma modificação fundamental na rede de inter-relações que os une. [...] Por isso não é surpreendente que, quando essas redistribuições ocorrem, dois homens que até ali pareciam compreender-se perfeitamente durante suas conversações, podem descobrir-se repentinamente reagindo ao mesmo estímulo através de generalizações e descrições incompatíveis. (2000, p. 247)

Respostas diferentes aos mesmos estímulos significam não apenas que a nossa visão de mundo mudou, mas revelam igualmente que o próprio mundo sofreu uma transformação. Tais discordâncias não podem ser eliminadas “simplesmente pela estipulação das definições dos termos problemáticos”, nem podemos recorrer a uma “linguagem neutra”, pois não existe linguagem independente de paradigmas. A mudança do paradigma, portanto, necessariamente se faz acompanhar por um “colapso na comunicação”. Nesses casos, a tradução de uma idioma para o outro é um recurso de diálogo, mas não de consenso, e além disso trata-se de algo “ameaçador e inteiramente estranho à ciência normal” (p. 247). Os motivos disso são claros. Havendo diferentes paradigmas, os cientistas geralmente discordam em pelo menos três pontos: quanto à lista de problemas que qualquer um que compartilhar o paradigma deve resolver, quanto à lista de critérios que definem as soluções aceitáveis, e quanto ao que existe, pois sempre que um paradigma muda, certas coisas simplesmente deixam de existir, enquanto outras tornam-se existentes. Por exemplo, o que antes era visto como um pato, era chamado de pato e era um pato, agora é visto como coelho e chamado de coelho, e tornou-se um coelho (2000, pp. 145-6). Em tais circunstâncias, o recurso à tradução não nos leva muito longe, pois, dependendo do contexto, ser um pato pode ter um sentido realmente muito diferente do de ser um coelho.
Isto basta quanto ao aprendizado da ciência a partir de exemplares. Outro ponto importante é o de que a ciência não progride pela solução de problemas através da aplicação de teorias e regras, mas pela percepção de novas situações-problema à luz dos exemplares. “Os cientistas resolvem quebra-cabeças”, escreve Kuhn, “modelando-os a partir de soluções de quebra-cabeças anteriores, freqüentemente com um recurso mínimo a generalizações simbólicas” (p. 235). Isto nos leva de volta à tese de que o conhecimento científico insere-se em exemplares compartilhados, mais do que em regras, leis ou critérios de identificação.
Guiados por um certo modo de ver o mundo, os cientistas tentam “forçar a natureza a encaixar-se dentro dos limites preestabelecidos e relativamente inflexíveis fornecidas pelo paradigma” (p. 45). Acrescenta Kuhn:

A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômeno; na verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma freqüentemente nem são vistos. Os cientistas também não estão constantemente procurando inventar novas teorias; freqüentemente mostram-se intolerantes com aquelas inventadas por outros. Em vez disso, a pesquisa científica normal está dirigida para a articulação daqueles fenômenos e teorias já fornecidos pelo paradigma. (2000, p. 45)

Resumindo, na ciência normal, os cientistas restringem seus esforços no intuito de resolver apenas três tipos de problemas: o de determinar fatos significativos, o de harmonizar tais fatos com a teoria e o de articular a teoria (p. 55).
Como, então, pode acontecer uma mudança de paradigma? Quando surge um sentimento de crise, ou seja, de “fracasso acentuado” da velha teoria na “atividade normal de resolução de problemas” (p. 103). De fato, todo paradigma confronta-se constantemente com anomalias, problemas recalcitrantes que deveriam ter sido resolvidos, mas não o foram. Em geral, os cientistas deixam tais problemas provisoriamente de lado e evitam rejeitar o paradigma em função de falhas desse tipo. Acontece, porém, que um determinado cientista se veja obrigado, por alguma anomalia persistente, a interromper sua pesquisa normal e a concentrar-se na anomalia. Seus motivos podem ser vários: é possível que ele fique preocupado com a falta de generalizações-guia ou com a impossibilidade de resolver um determinado problema visto como importante do ponto de vista social, técnico ou tecnológico (p. 113). Quando acontece algo desse tipo – e “a anomalia parece algo mais do que apenas um novo quebra-cabeças da ciência normal” – então, a transição para a crise, ou para a ciência extraordinária, ou seja, para a pesquisa revolucionária, foi posta em marcha. Kuhn descreve a emergência de uma crise da seguinte maneira:

Um número cada vez maior de cientistas eminentes do setor passa a dedicar-lhe uma atenção cada vez maior. Se a anomalia continua resistindo à análise (o que geralmente não acontece), muitos cientistas podem passar a considerar sua resolução como o objeto de estudo específico de sua disciplina. Para estes investigadores a disciplina não parecerá mais a mesma de antes. [...] Uma fonte de mudanças ainda mais importante é a natureza divergente das numerosas soluções parciais que a atenção concentrada tornou possível. [...] Através dessa proliferação de articulações divergentes (que serão cada vez mais freqüentemente descritas como adaptações ad hoc), as regras da ciência normal tornam-se sempre mais indistintas. A esta altura, embora ainda exista um paradigma, constata-se que poucos cientistas estarão de acordo sobre qual seja ele. Mesmo soluções padrão de problemas que anteriormente eram aceitas passam a ser questionadas. (2000, p. 114)

Por fim, de que modo devemos descrever o progresso alcançado através das revoluções científicas? Não como uma aproximação à verdade. Enquanto a ciência normal é cumulativa, as revoluções introduzem novos campos de problemas e incomensuráveis visões de mundo. Temos, pois, que “abandonar a noção, explícita ou implícita, de que mudanças no paradigma levam os cientistas, e os que aprendem com eles, a uma proximidade sempre maior da verdade” (p. 213). O crescimento científico não é, de modo algum, um processo evolutivo na direção de um fim último. De que modo, então, podemos falar a respeito do progresso da ciência? Nos termos propostos por Darwin: assim como a evolução das espécies ocorre pela seleção natural dos organismos “mais bem adaptados” ao ambiente, e não tem um fim último determinado por Deus ou pela Natureza, assim também a evolução das teorias científicas baseia-se na “seleção do modo mais apto de praticar a ciência futura, pelo conflito, no interior de comunidades científicas” (p. 215), e tampouco possui um objetivo último.
Nem todas as ciências estão suficientemente maduras a ponto de “funcionarem a partir de um único paradigma ou de um conjunto de paradigmas estreitamente relacionados” (p. 204). Esse tipo de maturidade é bastante raro. Mesmo nas ciências altamente desenvolvidas, encontramos sempre paradigmas conflitantes (p. 256). Além do mais, é preciso distinguir entre as comunidades científicas que alcançaram o paradigma amadurecido e as escolas que ainda se encontram no estágio “pré-paradigmático”. Numa tal época, é possível que alguns indivíduos estejam realmente fazendo ciência, mas “os resultados de seus empreendimentos não se adicionam à ciência tal como a conhecemos” (p. 205). Podem ocorrer, por exemplo, as coletas de fatos, mas elas “se aproximam muito mais de uma atividade ao acaso do que aquelas atividades que o desenvolvimento subseqüente da ciência torna familiar” (p. 35). Alguns dados poderão ser obtidos por observação, outros o serão através de experimentos, e outros ainda a partir de “ofícios estabelecidos, como a medicina”, que representa uma “fonte facilmente acessível de fatos que não poderiam ter sido descobertos casualmente” (p. 36). Quando os “pilares fundamentais de um campo encontram-se novamente em questão” e “as dúvidas sobre a própria possibilidade de progresso contínuo são continuamente expressas se um ou outro dos paradigmas opostos for adotado”, ou seja, em períodos de revolução, a coleta de fatos científicos geralmente regressa a uma situação muito semelhante à do estágio pré-paradigmático. O progresso científico cumulativo, ao mesmo tempo óbvio e garantido, existe apenas durante os períodos de ciência normal (p. 205).

3. Algumas objeções ao uso das idéias de Kuhn na discussão da história e da estrutura da psicanálise

Antes de aplicarmos essa percepção da ciência e do progresso científico à contribuição feita por Winnicott à psicanálise, gostaria de referir-me rapidamente a duas possíveis objeções contra uma leitura kuhniana da psicanálise em geral. Seria possível dizer, em primeiro lugar, que os pontos de vista desse autor somente se aplicam, quando muito, às ciências da natureza, e portanto não à psicanálise, que é uma ciência do homem. Esta forma de entender Kuhn não é destituída de dificuldades. É verdade que para Kuhn continua em aberto a questão de saber “que áreas das ciências sociais já adquiriram, até aqui, tais paradigmas (plenamente desenvolvidos)” (p. 35). Entretanto, ao dizê-lo, Kuhn não descarta a existência, nessas ciências, de elementos semelhantes a paradigmas. De fato, observa Kuhn,

Os membros de todas as comunidades científicas, incluindo as escolas do período “pré-paradigmático”, compartilham as espécies de elementos que rotulei coletivamente de “um paradigma”. O que muda com a transição à maturidade não é a presença de um paradigma, mas antes a sua natureza. Somente depois dessa transição é possível a pesquisa normal orientada para a resolução de quebra-cabeças. (2000, p. 223)

Tampouco estamos proibidos de falar de progresso em disciplinas diferentes das ciências naturais, até mesmo em áreas muito distantes da pesquisa empírica, tais como a teologia e a filosofia. “O teólogo que articula o dogma ou o filósofo que aperfeiçoa os imperativos kantianos contribuem para o progresso, ainda que apenas para o do grupo que compartilha as suas premissas” (p. 204). A verdadeira questão para Kuhn, ao discutirmos a psicanálise e as ciências sociais em geral, é o problema da transição dos modos de resolução de problemas pré-científicos ou pré-paradigmáticos para o modo científico ou paradigmático. Esse processo pode ser estudado por conta própria, pois ele ocorre constantemente em vários campos da cultura ocidental, sendo que a pesquisa atual “em partes da Filosofia, da Psicologia, da Lingüística e mesmo da História da Arte” sugere, segundo Kuhn, que tais disciplinas encontram-se em busca de novos paradigmas (pp. 156 e 204-5).
No Posfácio, Kuhn enfatiza mais uma vez que suas teses principais, quanto à estrutura da ciência e das revoluções científicas, aplicam-se igualmente a muitos outros campos: “Na medida em que o livro retrata o desenvolvimento científico como uma sucessão de períodos ligados à tradição e pontuados por rupturas não-cumulativas, suas teses possuem indubitavelmente uma larga aplicação” (p. 255). Ele explica por que:

E deveria ser assim, pois essas teses foram tomadas de empréstimo a outras áreas. Historiadores da Literatura, da Música e das Artes, do Desenvolvimento Político e de muitas outras atividades humanas descrevem seus objetos de estudo dessa maneira desde muito tempo. A periodização em termos de rupturas revolucionárias em estilo, gosto e na estrutura institucional têm estado entre seus instrumentos habituais. Se tive uma atitude original frente a esses conceitos, isso se deve sobretudo ao fato de tê-los aplicado às ciências, áreas que geralmente foram consideradas como dotadas de um desenvolvimento peculiar. (Ibid., grifo meu)

Conforme o próprio Kuhn descreve anteriormente (pp. 125-6), foi de fato a política que lhe proporcionou a idéia inicial de revolução. O que ele fez foi nada mais que isolar certas características da atividade de resolução de problemas, “das quais nenhuma é exclusiva da ciência” (p. 256). É por esta razão que ele não pode senão concordar com os que percebem a necessidade “de um estudo similar (e acima de tudo comparativo) das comunidades correspondentes em outras áreas” (ibid.). As questões a serem levantadas são:

Como se escolhe uma comunidade determinada e como se é aceito por ela, trate-se ou não de um grupo científico? Qual é o processo e quais são as etapas de socialização de um grupo? Quais são os objetivos coletivos de um grupo; que desvios, individuais ou coletivos, ele tolera? Como é controlada a aberração inadmissível? Uma compreensão mais ampla da ciência dependerá igualmente de outras espécies de questões, mas não existe outra área que necessite de tanto trabalho como essa. (Ibid., pp. 256-7)

Contra a minha aplicação da teoria da resolução de problemas científicos elaborada por Kuhn à psicanálise, poder-se-ia argumentar, em segundo lugar, que esse autor nem ao menos considera a psicanálise uma disciplina científica, visto que, num artigo escrito em 1970, ele concorda com Karl Popper ao dizer que “atualmente [a psicanálise] não pode ser chamada de ‘ciência’” (Kuhn 1970, p. 7).
Mas um exame mais cuidadoso desse artigo permite fazer várias ressalvas a essa objeção. Para começar, a própria formulação da concordância de Kuhn com Popper indica que esta se restringe ao momento presente, deixando implícito que talvez a psicanálise não seja uma ciência atualmente, nada nos impedindo, portanto, de pensar que ela se tornará uma ciência no futuro. Assim sendo, nada há de intrinsecamente não-científico no projeto de pesquisa da psicanálise.
Tal leitura é confirmada pela comparação, feita por Kuhn, entre a “psicanálise atual” (sic) e a “velha medicina”, bem como a outras especialidades e práticas em geral, tais como a astrologia, conforme praticada num passado mais longínquo por vários astrônomos famosos, entre os quais Ptolomeu, Kepler e Tycho Brahe, e mesmo a engenharia e a meteorologia “como eram praticadas há pouco mais de um século”. Escreve ele:

Em todos esses campos a teoria compartilhada adequava-se apenas ao estabelecimento da plausibilidade da disciplina, e a prover um fundamento racional para as várias regras técnicas que governavam essas práticas. Essas regras haviam provado sua utilidade no passado, mas nenhum de seus usuários as imaginava suficientes para evitar a ocorrência de freqüentes falhas. (Kuhn 1970, p. 8)

Todas as especialidades mencionadas buscavam incessantemente um paradigma mais estável e eficaz. De fato, diz Kuhn:

Ansiava-se por teorias mais articuladas e regras mais poderosas, mas teria sido um absurdo deixar de lado uma disciplina plausível e muitíssimo necessária com uma tradição de sucesso limitado apenas porque tais anseios não se encontravam ainda ao alcance. Na sua ausência, porém, nem o astrólogo nem o médico podiam fazer pesquisa. Embora tivessem regras as quais aplicar, não possuíam quebra-cabeças para resolver, e portanto não podiam fazer ciência. (Ibid., p. 9)

A conseqüência mais importante para a psicanálise, extraída por Kuhn desse esboço histórico, é a de que, nos tempos atuais, essa disciplina ainda não está em condições de formular quebra-cabeças do tipo que vem sendo resolvido pela ciência normal durante os seus períodos de pesquisa normal, sendo a situação de seus problemas semelhante à da medicina, da engenharia e da meteorologia no passado recente, e da astrologia em tempos mais remotos da cultura ocidental. Se, por esta razão, é possível dizer que a psicanálise assemelha-se à astrologia, isto não implica que aquela deverá ter o mesmo destino desta, e que não lhe seja possível vir a formular seus próprios paradigmas inteiramente amadurecidos, que permitam a resolução de quebra-cabeças.
O artigo de Kuhn contém uma importante observação a respeito da semelhança entre, por um lado, o comportamento dos cientistas em períodos pré-paradigmáticos, ou revolucionários, e, por outro, o dos filósofos em geral. Kuhn entende que “as razões para a escolha de sistemas metafísicos”, conforme descritas, por exemplo, por Popper, “assemelham-se estreitamente” à sua própria descrição “das razões para a escolha de teorias científicas”, ou seja, de paradigmas, sendo que a semelhança mais importante é o fato de que, em nenhuma das escolhas, “a experimentação pode desempenhar um papel decisivo” (ibid., p. 7): assim como não existem critérios de segundo nível para a eleição entre sistemas metafísicos rivais, não existem critérios metacientíficos para a opção entre critérios de experimentação científica. A diferença entre a ciência e a filosofia não é, portanto, uma questão de métodos de decisão sobre uma rede de compromissos. Ela se deve, isto sim, à capacidade da ciência de produzir exemplares, ou seja, soluções geralmente aceitas para problemas empíricos ou factuais compartilhados. Enquanto os filósofos permanecem sempre, por assim dizer, no estágio pré-científico, e jamais chegam ao nível da “ciência normal”, os cientistas passam por esse mesmíssimo processo apenas em fases iniciais de suas disciplinas, ou então em períodos de crise. Visto ser a psicanálise uma ciência recente, ainda em busca de sua moldura paradigmática integral, é apenas natural o fato de ela encontrar-se ainda no estágio de fazer escolhas semelhantes àquelas realizadas comumente pelos filósofos, e não às realizadas pelos praticantes de ciências mais maduras, e é também natural que ainda lhe faltem exemplares.
Ora, parece-me que Kuhn está certo quanto ao primeiro ponto, mas não quanto ao segundo. Simplesmente não é verdade que a psicanálise não tenha quebra-cabeças para resolver. Com efeito, a psicanálise começou – e voltarei a este ponto mais adiante – pela formulação e solução, por Freud, de quebra-cabeças específicos, resultado que foi considerado, pela comunidade psicanalítica em geral, extraordinariamente frutífero para a pesquisa e a prática psicanalíticas contemporâneas. Minha discordância de Kuhn, aqui, não é tanto conceitual quanto factual, ficando implícito que ele simplesmente não tinha informação suficiente do que estava e está ocorrendo no campo da psicanálise.
Espero que o caminho esteja agora livre para iniciarmos a descrição do processo (natural) pelo qual Winnicott encontrou o seu paradigma, nos termos de Kuhn. Usarei o método histórico, reconstruindo, em primeiro lugar, o paradigma edípico ou triangular de Freud, de “três corpos”, que foi o ponto de partida de Winnicott. Em seguida, examinarei a crise pela qual Winnicott passou, pouco tempo depois de começar a estudar a psicanálise, explicando que a mesma foi motivada, em primeiro lugar, por sua observação de perturbações psíquicas em crianças muito novas, que pareciam contradizer a teoria freudiana da sexualidade (ou seja, a generalização predominante do paradigma freudiano), em segundo lugar, por seu reconhecimento da importância dos problemas de crianças desajustadas, que não eram considerados sexuais, e que, em conseqüência disso, estavam excluídas do tratamento psicanalítico e encaminhadas a outras instituições, e, em terceiro lugar, por insuficiências técnicas do setting freudiano original. Em resumo, a crise de Winnicott deveu-se às três principais razões, enunciadas e explicadas por Kuhn, para a existência de uma crise. Prosseguirei mostrando como, a princípio, Winnicott buscou encontrar uma saída para a crise fazendo uma aliança com M. Klein, chegando à conclusão de que Klein e os kleinianos (Fairbairn inclusive) não ofereciam soluções para os seus problemas. Em seguida, procurarei reconstituir os passos mais importantes adotados por Winnicott em sua pesquisa revolucionária, que o levaram a propor um novo paradigma, não-edípico ou dual, com base no relacionamento dual mãe-bebê (de “dois corpos”). De acordo com esta perspectiva, as suas contribuições mais importantes para a teoria e a prática da psicanálise podem ser vistas como uma tentativa de ultrapassar uma crise específica dessa disciplina, pelo desenvolvimento de uma nova matriz disciplinar paradigmática para a psicanálise como um todo, capaz de resolver problemas que haviam conduzido ele e outros a um impasse, sem, no entanto, se desfazer de nada que fosse de importância essencial na obra de seus predecessores.

4. O paradigma edípico de Freud

Quais seriam os principais exemplares encontrados pelos psicanalistas ortodoxos em sua formação, e em seguida aplicados à sua prática clínica? Num texto publicado em 1913 para um público científico amplo, Freud descreveu a psicanálise mostrando como esta procedia à explicação de lapsos e de sonhos. Os sonhos, particularmente, deviam ser vistos como “protótipos normais de todas as estruturas psicopatológicas”. Quem quer que compreendesse os sonhos “poderia entender também os mecanismos psíquicos das neuroses e das psicoses” (W 8, p. 172).
Nessa declaração não era atribuída qualquer significância especial à sexualidade. Freud chega a este tema mais tarde, no mesmo trabalho, ao dizer que

Num estágio inicial de suas pesquisas, a psicanálise foi levada a concluir que as doenças nervosas são a expressão de distúrbios da função sexual, passando a dedicar, por esta razão, a sua atenção ao exame daquela função – a qual vinha sendo negligenciada já há um tempo demasiadamente longo. (W 8, p. 180, grifo meu)

Para esse fim era necessário, em primeiro lugar, ampliar o “conceito indevidamente restrito de sexualidade, ampliação essa justificada pela referência ao comportamento infantil”. A fórmula final à qual chegou a psicanálise quanto à natureza das neuroses foi: “O conflito primário que leva à neurose é aquele que ocorre entre os instintos sexuais e os instintos que preservam o ego” (ibid., p. 181).
A questão importante é: qual era o material clínico referente ao conflito primário ao qual estava relacionada tal fórmula? Nos termos de Kuhn, quais eram os problemas clínicos concretos que a teoria da sexualidade seria considerada capaz de tornar inteligíveis e resolver? A resposta inequívoca diz: não apenas lapsos e sonhos, mas todos os problemas que poderiam acontecer a uma criança, a partir do que Freud chamou de complexo de Édipo. É este o sentido de uma afirmação posterior de Freud, numa nota de rodapé acrescentada à 4a edição de Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, em 1920:

Já foi dito justamente que o complexo de Édipo é o complexo nuclear das neuroses, constituindo a parte essencial do seu conteúdo. Ele representa o ponto culminante da sexualidade infantil, a qual, através de seus efeitos subseqüentes, exerce uma decisiva influência sobre a sexualidade do adulto. (W 7, p. 149n)

O estudo minucioso das pesquisas de Freud sobre a sexualidade levam a concluir que, em primeiro lugar, a sua teoria da sexualidade teve início ao mesmo tempo que a descoberta, no material clínico e em sua auto-análise, da existência da situação edípica e de sua importância para a teoria da sexualidade infantil, e, em segundo lugar, que ela desenvolveu-se prioritariamente pelo reconhecimento, num âmbito cada vez mais amplo, da importância do complexo de Édipo “como o fenômeno central do período sexual dos primeiros tempos da infância” (W 7, p. 317, grifo meu). Na mesma nota de rodapé acima citada, Freud afirma: “Com o progresso dos estudos psicanalíticos, a importância do complexo de Édipo tornou-se mais e mais evidente”. E acrescenta: “Seu reconhecimento transformou-se no shiboleth que distingue os que aderem à psicanálise de seus oponentes” (W 7, pp. 149-50, grifo meu).
Tornando o complexo de Édipo um “shiboleth”, isto é, num signo identificatório, Freud especificava o que Kuhn chamaria de exemplar, o qual serviria para instituir a comunidade dos psicanalistas. O critério de identidade determinado por Freud para a psicanálise é uma situação-problema, que em sua opinião havia sido resolvida de maneira exemplar pela constelação dos comprometimentos teóricos da psicanálise, quer dizer, pela teoria psicanalítica da sexualidade ajudada pela metapsicologia. Freud começou muito rapidamente a usar o complexo de Édipo também como uma regra concreta com a qual era possível expelir pensadores dissidentes do grupo. O caso mais famoso, certamente, foi o de Jung. O fato seguinte, bem conhecido, é importante no presente contexto: o único texto de Freud em que ele tenta provar a existência histórica e material da cena primária, isto é, da situação edípica, é “O Homem dos Lobos”, voltado explicitamente para a refutação das idéias de Jung.
Assim, identificamos o principal exemplar e a generalização-guia mais importante que constituem parte da nova “constelação de comprometimentos”, por meio da qual Freud provocou a sua revolução na pesquisa científica sobre a sexualidade e as psiconeuroses, criando a psicanálise: o conflito edípico e sua resolução através da teoria da sexualidade. Outros elementos da constelação de comprometimentos que fazem parte da matriz disciplinar de Freud, e que devo explicitar aqui, são seu modelo ontológico do homem, suas regras heurísticas e seus valores. Muito resumidamente, a ontologia freudiana inclui um certo número de suposições ou, mais precisamente, de especulações sobre forças e energias psíquicas e sobre a constituição inata do aparelho mental. Quanto à metodologia e à heurística por ele adotadas, têm elas por base a relação transferencial, específica à psicanálise, combinada com alguns métodos comuns à pesquisa científica em geral: coleta de fatos, formulação e teste de hipóteses (generalizações empíricas). Freud também acreditava, como todos os demais seguidores da escola de Helmholz no campo das ciências da natureza, em certas máximas metodológicas que, em sua essência, provinham de Kant, segundo as quais nenhuma ciência empírica seria completa sem “construções auxiliares”; todas as explicações deviam ser dinâmicas e baseadas em forças quantificáveis; e, no caso de indivíduos humanos, todo o jogo de forças tinha lugar no interior de um aparelho herdado e posteriormente desenvolvido. Tal postura metodológica dava margem a ousadas especulações, as quais, no caso de Freud, baseavam-se num amplo espectro de metáforas, tomadas em parte da biologia e, simultaneamente, das teorias psicológicas e filosóficas da consciência.
Por fim, havia um conjunto de valores contido implícita ou explicitamente no paradigma freudiano. Como toda pesquisa realizada de acordo com o método científico, a psicanálise se apresenta como uma busca interminável da verdade empírica sobre os fenômenos clínicos. Assim como nas demais ciências, os resultados da pesquisa psicanalítica são sempre passíveis de correção, não havendo verdades últimas sobre nenhum assunto, nenhuma crença absolutamente verdadeira, visto que na ciência só podemos ter crenças provisórias, sujeitas à correção. Embora se declare um positivista, Freud vê-se obrigado a trabalhar com especulações heurísticas de caráter metafísico, comportando-se, portanto, como um kantiano. Mesmo assim, a psicanálise permanece diferente da filosofia – na medida em que constitui não uma visão geral e final de mundo, mas um modo de pesquisar os fatos empíricos – e também diferente das artes, e especialmente da religião. Quanto à sua utilidade social, esta é dada por sua preocupação em aliviar o desprazer e mesmo a dor causados pela repressão demasiadamente intensa do desejo (pela libido censurada).
Foi no interior desta matriz disciplinar que Freud produziu sua psicologia clínica e sua metapsicologia. A primeira é a teoria empírica dos fatos pertencentes a quatro áreas principais: a sexualidade, as neuroses, as estruturas psíquicas e a ordem social. A segunda, por sua vez, é apresentada como a “supra-estrutura especulativa” da primeira. Enquanto a teoria da sexualidade e outras partes da psicologia clínica psicanalítica podem reivindicar um status de verdade empírica, ainda que não definitiva, as partes metapsicológicas da teoria psicanalítica são introduzidas como meras convenções. As pulsões (Triebe), por exemplo, são convenções. Não é, portanto, legítimo usar a metapsicologia como fundamento para a psicologia clínica, sendo a experiência clínica propriamente dita a única fundamentação utilizável para esse tipo de conhecimento. Mesmo não sendo nem precisando ser verdadeiras, as especulações metapsicológicas são indispensáveis, devido ao seu valor heurístico enquanto guias para a pesquisa empírica, e enquanto esquemas para organizar os resultados já obtidos. Para tanto, hipóteses e especulações metapsicológicas devem ser coerentes com a experiência clínica e, de um modo mais geral, com a experiência consciente, bem como devem sê-lo umas com as outras.
A metapsicologia de Freud é um vasto e sofisticado edifício de enunciados especulativos, segundo os quais existiria uma cena inconsciente na vida mental, habitada por entidades análogas a entidades mentais conscientes, tais como representações, impulsos e desejos. Processos mentais que governam essas entidades, embora não obedeçam às mesmas leis que aqueles que governam os processos mentais conscientes, são concebidos como resultando de forças psíquicas que agem de acordo com o princípio de determinismo universal. Dessa forma, Freud transferiu, para o domínio do inconsciente, as propriedades gerais tanto empíricas quanto metafísicas dos estados conscientes. A grande parte desses elementos, bem conhecidos pela psicologia empírica de sua época, é uma herança da teoria kantiana da subjetividade, a qual, como bem sabem os filósofos, tinha como base uma concepção dinâmica da natureza, que incluía as duas forças básicas de atração e de repulsão, e uma teoria da estrutura psíquica. Nessa perspectiva, o dualismo dinâmico de Freud nada mais é que uma adaptação do dualismo metafísico kantiano, enquanto os elementos principais de aparelho psíquico correspondem às faculdades anímicas kantianas, só que redescritas como “agências” ou “instâncias”, de acordo com os propósitos da pesquisa psicanalítica. Influenciado por seus estudos médicos, Freud naturalizou os elementos da teoria da subjetividade da filosofia moderna e tentou inclusive montar especulativamente uma máquina capaz de produzir todos os efeitos psíquicos que são observados na clínica ou na vida comum. Na versão inicial da metapsicologia, essa máquina era biológica (cf. o assim chamado Projeto para uma psicologia científica). Nas versões mais maduras, formuladas por volta de 1915, o modelo metapsicológico dominante do indivíduo humano usado por Freud passou a ser a máquina psicológica, herdada de Leibniz, Kant e outros. A essa altura, Freud falava exclusivamente de forças psíquicas e de um aparelho mental.
As especulações metapsicológicas de Freud devem ser cuidadosamente distinguidas de seu exemplar (o complexo de Édipo) e de suas generalizações-guia (que pertencem à teoria da sexualidade e suas extensões). E por várias razões. Primeiro, os exemplares são diferentes dos outros compromissos e, além disso, são de longe os elementos mais importantes de uma matriz disciplinar. Segundo porque os compromissos empíricos não devem ser confundidos com os ontológicos. Terceiro, essas diferenças são importantes para a compreensão da história da psicanálise. Como veremos mais adiante, Winnicott viu-se às voltas com uma crise deflagrada, de início, não por problemas relacionados à metapsicologia freudiana, mas pela esterilidade do exemplar do Édipo e da teoria da sexualidade em dar conta dos problemas clínicos que ele decidiu considerar importantes em sua prática médica e psicanalítica.

5. A crise de Winnicott

O paradigma edípico, encaixado na metapsicologia, revelou-se muito fértil na resolução de um grande número de problemas novos, a teoria da sexualidade servindo de ponto de partida para várias extensões e aplicações da psicanálise. Primeiramente, e isso foi de capital importância para a própria psicanálise, ele serviu para o desenvolvimento da teoria das neuroses e dos distúrbios psíquicos em geral (paranóia, homossexualidade, fetichismo). Em segundo lugar, na elaboração da teoria do desenvolvimento e da estrutura do aparelho psíquico. Em terceiro, como ponto de partida para a teoria da sociedade, da religião e da moral. Permitam-me recordar que Freud arriscou uma afirmação muitíssimo audaciosa sobre a moral, a saber, de que “o imperativo categórico de Kant é o herdeiro direto do complexo de Édipo” (W 11, p. 422), deixando implícito que a moral tradicional era um subproduto da vida sexual humana.
Mas o paradigma edípico logo defrontou-se também com sérias anomalias. O próprio Freud encontrou uma delas: o relacionamento inicial, pré-edípico, das meninas com suas mães. Klein deparou-se com outras, mostrando a importância da ansiedade anterior ao desenvolvimento definitivo do complexo de Édipo fálico ou genital. Nos anos 40, Fairbairn formulou uma crítica adicional ao paradigma edípico, e na verdade à teoria freudiana da libido como um todo.
No entanto, até onde me é dado saber, o primeiro verdadeiro desafio ao paradigma edípico freudiano no interior da psicanálise veio de Winnicott. Enquanto ainda fazia a sua formação psicanalítica, Winnicott sentiu-se “espantado tanto pela possibilidade, proporcionada pela psicanálise, de compreender a vida da criança, quanto por uma certa deficiência da teoria psicanalítica” (1965b, p. 172, grifo meu). É nestes termos que ele descreve tal deficiência:

Naqueles tempos, nos anos 20, tudo girava em torno do complexo de Édipo. A análise das psiconeuroses levava o analista, sempre e sempre, às ansiedades pertencentes à vida instintiva dos 4 ou 5 anos de vida da criança, quando esta relaciona-se com duas pessoas. Perturbações anteriores que surgiam na análise eram tratadas como regressões aos pontos de fixação pré-genitais, mas a dinâmica tinha origem no conflito localizado na fase do complexo de Édipo plenamente desenvolvido da criança que aprende a andar ou que passou a andar há pouco tempo [...]. (Ibid., grifo meu)

O mesmo ponto é assinalado por Winnicott num relato autobiográfico posterior sobre sua formação psicanalítica, redigido quase diretamente em termos kuhnianos:

Quando comecei a tentar estudar o que havia para aprender aqui sobre psicanálise, vi que naqueles dias nos ensinavam a respeito de qualquer coisa nos termos do complexo de Édipo dos 2, 3 ou 4 anos, e da regressão que poderia ocorrer a partir dele. (1989a, pp. 574-5)

Enquanto aprendia a olhar todo e qualquer distúrbio psíquico à luz do complexo de Édipo, Winnicott, que naquela época era ao mesmo tempo um pediatra praticante, encontrou-se diante da seguinte dificuldade:

No entanto, inúmeros relatos de casos mostravam-me que as crianças que sofriam de distúrbios psiconeuróticos, psicóticos, psicossomáticos ou anti-sociais apresentavam dificuldades em seu desenvolvimento emocional já na primeira infância, enquanto ainda bebês. [...] Alguma coisa estava errada em algum lugar. (1965b, p. 172, grifo meu)

Temos aqui a descrição do problema clínico que deflagrou a pesquisa revolucionária de Winnicott, a saber, as perturbações que pertenciam ao suposto campo de aplicação do paradigma edípico, mas que simplesmente não se encaixavam nele. O paradigma edípico não estava inteiramente errado, na verdade ele era constantemente confirmado, mas se mostrava insuficiente: mais precisamente, não conseguia fazer tudo o que Freud esperava que ele fizesse. A primeira, e de longe a mais importante dificuldade que Winnicott encontrou na psicanálise freudiana, dizia respeito à sua shiboleth, e não à metapsicologia. Nos termos de Kuhn, o que aconteceu com Winnicott durante o período de sua formação foi que ele se deparou com uma séria anomalia no quadro de referências do paradigma no qual ele estava sendo treinado. E mais: surgiu-lhe todo um campo de problemas que resistiam ao entendimento e ao tratamento “ortodoxos”.
Depois de fazer essa descoberta, Winnicott viu-se só e excluído do grupo. Nos anos 20 e 30, escreve ele em “D.W.W. sobre D.W.W.” (1989a, Posfácio), a própria existência de algo como uma neurose obsessiva num bebê de 16 meses era simplesmente negada enquanto fato. Rechaçavam-na com a objeção: “Ora, isto não pode acontecer”. Comenta ele:

Ninguém queria ouvir essa idéia, porque para que ocorresse uma neurose obsessiva era preciso que houvesse uma regressão a partir de dificuldades edípicas aos três anos. Tenho consciência de estar enfatizando este ponto em excesso, mas foi com ele que eu encontrei um caminho. Pensei comigo mesmo: Vou demonstrar que os bebês ficam muito doentes bem cedo, e se a teoria não o aceita, ela vai ter que se adaptar. E assim foi. (1989a, p. 575; grifo meu)

Assim, identificamos o ponto exato em que Winnicott começou a afastar-se de Freud, dando início à pesquisa revolucionária que acabou por substituir o paradigma edípico de Freud, “de três corpos”, pelo paradigma de Winnicott, da relação mãe-bebê, “de dois corpos”.

6. A tentativa de encontrar a solução na “área de aprendizagem” de M. Klein

O primeiro passo de Winnicott, porém, foi o de tentar salvar o paradigma edípico. Dos meados dos anos 20 em diante, ele entregou “muitos trabalhos assustados e hesitantes aos seus colegas”, nos quais descrevia casos de bebês emocionalmente doentes “que precisavam ser reconciliados de algum modo com a teoria do complexo de Édipo enquanto ponto de origem dos conflitos individuais” (1965b, p. 172). No entanto, não levou muito tempo para que ele chegasse à conclusão de que se precisava de uma psicologia do bebê recém-nascido, que não tentasse reduzir todos os problemas apenas à “angústia de castração e ao complexo de Édipo” (1958a, p. 34n). Parecia-lhe claro que “essa psicologia da criança pequena e do bebê não é tão simples quanto parece à primeira vista, e que é preciso admitir a existência de uma estrutura mental bastante complexa mesmo no bebê recém-nascido” (1958a, p. 34). Mas Winnicott não sabia onde encontrar tal psicologia. Ficou então sozinho, sem um paradigma que o guiasse.
Um momento importante em sua vida aconteceu quando J. Strachey, seu analista na época, lhe disse para procurar Melanie Klein, que também estava tentando aplicar a psicanálise às crianças pequenas. Winnicott levou-lhe um texto no qual apresentava um exemplo de uma análise “pré-kleiniana”, de uma criança, levada a cabo por ele com base em sua própria análise com Strachey. “Foi um momento difícil para mim”, diz ele, “porque da noite para o dia deixei de ser um pioneiro e passei a ser o aluno de uma professora pioneira” (1965b, p. 173).
Muito rapidamente, porém, ele descobriu que a psicologia do bebê recém-nascido por ele buscada não poderia ser do tipo kleiniano. Em diversos trabalhos, Winnicott explicita suas principais razões para rejeitar a abordagem de M. Klein. De acordo com ela, o material clínico relevante deveria referir-se “ou ao relacionamento objetal da criança, ou aos mecanismos de projeção e introjeção” (ibid., p. 174). Tratava-se de mecanismos “profundos”, mas para Winnicott eles eram “tardios”. Em 1962, ele diz que uma boa parte do que Klein havia escrito nas últimas duas décadas de sua tão frutífera vida talvez tenha sido “estragada” por sua tendência a empurrar, sem a menor garantia, para mais e mais cedo, a idade em que emergiam os mecanismos mentais profundos. Ela cometia erros porque “em psicologia, mais profundo nem sempre significa mais cedo”. Winnicott estava convencido de que “quando você vai em busca das coisas mais profundas, você não chega ao que é mais inicial” (1989a, p. 581). Por exemplo, a ameaça do talião e a divisão do objeto em “bom” e “mau” são mecanismos realmente profundos. Mas a capacidade de usá-los não se estabelece antes da capacidade de usar a projeção e a introjeção, e estas, por sua vez, dependem de uma boa maternagem anterior que, aliás, não é um mecanismo mental e nem mesmo um fenômeno mental. Além do mais, Winnicott nunca aceitou a teoria kleiniana da natureza e da etiologia das psicoses, formulada em termos de mecanismos mentais hereditários e de conflito entre instintos.

7. Winnicott e Fairbairn

Seria possível pensar que Winnicott sentia-se mais próximo de Fairbairn, que também criticava o paradigma do Édipo. Realmente, em 1941, Fairbairn lamentou o equívoco pelo qual “a situação edípica era considerada um fenômeno psicológico, em vez de sociológico” (Fairbairn 1952, pp. 36-7). Já em 1944 ele afirmou que a situação edípica não representava um conceito explicativo, e sim “um fenômeno a ser explicado” (ibid., p. 121).
Tais comentários parecem caminhar na direção adotada por Winnicott. Mas um exame mais cuidadoso das posições de Fairbairn mostra que não era bem assim. Este último buscava as causas de todos os problemas patológicos nas perturbações ocorridas dentro das relações objetais (p. 82), especialmente as referentes aos objetos internos. Os distúrbios esquizóides, em particular, eram pensados como conseqüência do processo de introjeção. Como tais, eles eram vistos não como um processo primário, mas como mecanismos de defesa (1989a, p. 418). Defesa contra o quê? Contra a ambigüidade na relação objetal, responsável pela repressão da libido. A explicação para essa repressão não se encontrava na situação edípica freudiana (tardia), pois a situação edípica inicial “não é realmente uma situação externa, mas uma situação interna”. A diferença fundamental em relação a Klein reside no fato de o Édipo não ser construído em torno da equação simbólica mental “seio = pênis” e do conflito entre o instinto de morte e a libido, mas “ao redor das figuras de uma mãe internalizada excitante, e uma mãe internalizada rejeitadora” (1952, pp. 123-4). Fairbairn resume a sua posição da seguinte maneira:

Assim, do meu ponto de vista, a situação triangular que dá lugar ao conflito original da criança não é aquela constituída por três pessoas (a criança, a mãe e o pai), mas a constituída essencialmente pelo ego central, o objeto excitante e o objeto que rejeita. (1994, vol. 1, p. 28, grifo meu)

A etiologia proposta por Fairbairn para as condições patológicas continua, portanto, a ser de natureza edípica, triangular, ainda que o triângulo se defina de um modo que difere de Freud e Klein. Não temos mais uma situação edípica objetivamente vivida, como em Freud: agora trata-se de uma situação “internalizada”, essa internalização implicando a existência e o funcionamento de operações e mecanismos mentais que Winnicott veio a rejeitar, como foi dito acima, com base em suas observações clínicas.
Em 1953, Winnicott escreveu uma resenha devastadora sobre a coleção de artigos de Fairbairn, publicada um ano antes. Quais eram os seus argumentos mais importantes? Primeiro, o de que Fairbairn “começava com um bebê que é um ser humano total, vivenciando uma relação com o seio percebido como um objeto separado, um objeto com o qual ele tem experiências e sobre o qual lhe ocorrem idéias bem complicadas” (1989a, p. 416). Segundo, o fato de Fairbairn explicar as perturbações encontradas em indivíduos que apresentam características esquizóides como sendo fenômenos regressivos determinados por relacionamentos emocionais insatisfatórios com os pais, sem esclarecer se “a mãe apenas provoca a regressão a esse estado inicial ou se ela o cria”. Dito de outro modo, Fairbairn não se decide sobre se “a deprivação é o resultado de um cuidado deficiente por parte da mãe, ou se ela é inevitável no cuidado da criança”. É, portanto, muito difícil “compreender se Fairbairn considera essa falha da mãe como uma verdadeira falha da mãe ou como uma projeção da criança, sobre a mãe, do seu próprio destino” (1989a, pp. 417-8). Se ambas as coisas são vistas como uma só, devido à imaturidade de todas as pessoas envolvidas (inclusive a mãe), seria o caso de dizer que Fairbairn “não encontrou a linguagem capaz de dar conta tanto do normal quanto do anormal” (p. 417, grifo meu). Essa “estrutura teórica” imperfeita prejudica o que se poderia aprender com os valiosos “lampejos de compreensão clínica” do autor.
É essa mesma objeção que Winnicott dirigiu a Klein: a de ela tratar os distúrbios precoces como problemas mentais internos e não como problemas do relacionamento real entre o bebê e a mãe. Essa diferença é de importância decisiva, pois, no segundo caso, confrontamo-nos com a tarefa adicional de definir os cuidados maternos suficientemente bons, enquanto no primeiro caso tal problema não surge.

8. A pesquisa revolucionária de Winnicott: seu caminho até o paradigma

Winnicott não desejava abandonar os procedimentos da psicanálise ortodoxa, eficientes ferramentas na resolução de problemas, mesmo estando eles embutidos em postulados metapsicológicos (forças psíquicas e mecanismos mentais) que ele rejeitava. Mencionamos acima sua declaração de que a existência do complexo de Édipo era algo bem confirmado. Reconhecia também a grande importância e a sólida base empírica da teoria kleiniana da posição depressiva, embora visse ali uma situação dual e não triangular, como fazia Klein. Por outro lado, ele precisava de procedimentos novos e mais poderosos que pudessem resolver os problemas clínicos que tinham sua origem na relação mãe-bebê real e primitiva. Assim sendo, que rumo ele iria tomar?
Um elemento importante da solução encontrada por Winnicott veio do estudo do ambiente. Desde 1923 ele se via cada vez mais atento ao fato de que havia uma relação entre o ambiente e a doença psíquica e, diz ele, isto “fez acontecer algo dentro de mim” (1989a, p. 576). Nos anos 20 e 30 nenhum psicanalista estava interessado nesse problema. Ele foi inclusive aconselhado a deixar de lado esse tipo de pesquisa por seu analista J. Strachey (1923-33), um freudiano ortodoxo, e depois por J. Riviere, sua segunda analista (1933-38). Riviere recusou-se a sequer considerar um artigo que Winnicott planejava escrever sobre a classificação dos diversos tipos de ambiente. Naquela época, conta ele, os psicanalistas “eram as únicas pessoas [...] que aceitavam a existência de qualquer coisa, menos a do ambiente” (1989a, p. 577). Ele, porém, não podia deixar de concordar com os que viviam gritando que uma criança podia ficar doente pelo fato de seu pai ser alcoólatra. O problema à sua frente foi por ele descrito nos seguintes termos: “Como voltar atrás e levar em conta o ambiente, sem perder tudo aquilo que foi conquistado pelo estudo dos fatores internos?” (1989a, p. 577, grifo meu).
De fato, qual foi a solução encontrada por Winnicott? A ajuda lhe foi proporcionada, em grande medida, por um elemento acidental – a guerra – e provavelmente também por sua futura esposa, Clare Britton. Envolvendo-se com as operações de transferência das crianças pequenas de Londres para o interior, Winnicott viu-se obrigado, “enfim”, assim escreve ele, a tratar de crianças abandonadas e desajustadas. Até então ele evitava casos desse tipo, permanecendo fiel à postura oficial segundo a qual a psicanálise nada tinha a ver com situações “reais”. Foi então que lhe ocorreu a “idéia original” (durante uma viagem a Paris, acreditava ele) da “tendência anti-social” e da “esperança”, uma de suas descobertas essenciais, em termos da psicologia da criança, “extremamente importante” para a sua prática clínica. A idéia era a de que “o problema por trás da tendência anti-social em qualquer família, normal ou não, é a deprivação”, e de que a esperança tinha o sentido de “tentar recuperar o objeto perdido, passando por cima da deprivação” (1989a, p. 577).
Tendo descoberto a conexão entre o processo de maturação e o ambiente facilitador, entre “natureza e cultivo” (nature and nurture), Winnicott viu-se às voltas com uma nova tarefa, a de formular “um tipo de base teórica da provisão ambiental, partindo dos cem por cento de adaptação que logo decaíam conforme a capacidade do bebê de usar as falhas da adaptação” (1989a, p. 579, grifo meu). Isto, porém, implicava na formulação de uma “teoria da dependência e da adaptação”, numa perspectiva desenvolvimentista e histórica (ibid., p. 579).


9. O exemplar de Winnicott: o bebê-no-colo-da-mãe
Enquanto trabalhava na teoria do relacionamento entre o indivíduo e o ambiente dentro dessa perspectiva, Winnicott chegou a duas conclusões decisivas. Primeiro, a de que “é impossível falar do indivíduo sem falar da mãe” porque, usando os termos da fase madura da sua teorização, a mãe “é um objeto subjetivo [...] e portanto o seu comportamento faz realmente parte do bebê” (1989a, p. 580). Segundo, de que o relacionamento inicial mãe-bebê não é uma relação triangular-interna (mental), mas um tipo muito especial de relação dual-externa (não mental). Em 1958, ele o descreve da seguinte maneira:

Qualquer tentativa de descrever o complexo de Édipo em termos de duas pessoas está fadada ao fracasso. No entanto, os relacionamentos do tipo dois corpos realmente existem, e pertencem aos estágios relativamente mais primitivos da história do indivíduo. O relacionamento original do tipo dois corpos é o que acontece entre o bebê e a mãe ou o substituto da mãe, antes que qualquer propriedade da mãe tenha sido identificada e transformada na idéia de um pai. (1965b, pp. 29-30, grifo meu)

No início, o pai pode ou não ser uma mãe substituta. Se ele o é, sua presença ali não é a de um pai, ou seja, alguém dotado de propriedades e funções diferentes das da mãe. No relacionamento do tipo “dois corpos”, a mãe pode ser vista como sendo, no início, “um objeto parcial, ou um conglomerado de objetos parciais”. O mesmo pode ser dito de quem exerce as suas funções, e portanto também do pai enquanto mãe substituta.
Mas, “em algum momento”, o pai realmente passa a “ser sentido como estando ali num papel diferente”. Chega a época em que o indivíduo irá provavelmente usar o pai com um propósito bem específico, a saber:

Como um projeto da sua própria integração quando for a hora de tornar-se uma unidade. Se o pai não está ali, o bebê realizará o mesmo desenvolvimento, mas de modo mais trabalhoso, ou então utilizará um outro relacionamento suficientemente estável com uma pessoa total. (1989a, p. 243)

Assim sendo, o papel principal do pai no início, na relação com a criança que não é mais um bebê, nada tem a ver com a idéia de objeto parcial, e sim com o fornecimento “de um primeiro vislumbre [...] de integração e de totalidade pessoal”. Nos casos mais favoráveis, o pai “enquanto pai, e não como um substituto da mãe”, entra em cena “como pessoa total”, “como algo integrado na organização egóica e na conceitualização mental do bebê” (1989a, p. 243). É somente mais tarde que ele “vem a receber a atribuição de um objeto parcial significativo” (o pênis), que passa a desempenhar um papel muito importante nos relacionamentos de três corpos da criança.
Essa concepção do relacionamento dual inicial mãe-bebê permitiu a Winnicott chegar a uma formulação mais precisa do problema paradigmático que foi o seu ponto de partida: as crianças estão sujeitas, no início, a ansiedades que não devem ser concebidas como produtos de supostas forças e mecanismos mentais inatos, mas como conseqüências da ação de um fator externo, a primitiva falha da mãe em fornecer um ambiente suficientemente bom. Num texto tardio, Winnicott escreveu:


A fim de progredirem rumo a uma teoria mais eficiente da psicose, os analistas devem abandonar inteiramente a idéia de que a esquizofrenia e a paranóia surjam por regressão do complexo de Édipo. A etiologia desses distúrbios nos leva inevitavelmente a estágios que precedem o relacionamento de três corpos. O estranho corolário daí resultante é o de que a raiz da psicose encontra-se num fator externo. (1989a, p. 246)

Essa passagem é concluída com uma observação sobre os kleinianos, dizendo que “é difícil para os psicanalistas admitirem tais coisas após todo o trabalho que tiveram de chamar a atenção para os fatores internos no estudo da etiologia das psiconeuroses” (p. 246).
Ao voltar-se para fatores externos como causas da doença psicótica, Winnicott de certo modo reverteu a tendência então predominante na teoria psicanalítica de formular os problemas clínicos em termos de mecanismos mentais, e, mais radicalmente ainda, em termos de equações simbólicas inatas (seio = pênis) ou da castração simbólica do Lacan. A psicose foi transformada num processo “natural”, tendo suas causas em relacionamentos humanos “externos” e reais, e não em relacionamentos e processos internos, e menos ainda simbólicos. Em oposição a Freud, Winnicott não definiu os relacionamentos externos como sexuais, nem como sociais ou mesmo psicológicos, mas em termos “pessoais”, com base em formas especiais de mutualidade e intimidade entre as mães e seus bebês. Dessa maneira, ele operou o Gestalt switch para o seu novo paradigma dual que eu chamo de “paradigma do bebê-no-colo-da-mãe”. Nessa nova matriz, as situações provocadoras da esquizofrenia não poderiam mais ser vistas como triangulares:

Assim como o estudo das psiconeuroses leva o estudioso ao complexo de Édipo e às situações triangulares, que alcançam seu auge na época em que a criança aprende a andar, e depois novamente na adolescência, o estudo das psicoses conduz o pesquisador aos momentos mais primitivos da vida do bebê. Isto tem a ver com a relação mãe-bebê, visto que nenhum bebê desenvolve-se fora de uma relação deste tipo. (A idéia da dependência tem lugar aqui, antes do funcionamento pleno dos mecanismos mentais de projeção e introjeção.) (1965b, p. 131)

O que Winnicott está rejeitando aqui, e em muitos outros textos, é a própria idéia de que a esquizofrenia e a paranóia na primeira infância tenham algo a ver com relacionamentos triangulares ou de três corpos. Os únicos fatos que poderiam contar como causas potenciais dos distúrbios psíquicos desse tipo são eventos que podem acontecer e ter sentido na experiência do bebê, e não há nem pode haver nenhum tipo de terceiro elemento ou elemento paterno no relacionamento do bebê com sua mãe.
Chegamos agora ao elemento crucial da questão: a psicologia do recém-nascido deve ser concebida como sendo essencialmente diferente da psicologia dos adultos, ou mesmo das crianças pequenas. Não só a teoria da sexualidade deixa de ser aplicável, mas a abordagem metapsicológica freudiana deve ser rejeitada como um todo. A vida do bebê e sua “inconsciência”, se é que existe algo desse tipo num bebê, não podem ser descritas em termos de forças e processos mentais. Em particular, suas necessidades precisam ser distinguidas de seus desejos – estes sim sendo estados mentais –, bem como dos impulsos e instintos, que constituem entidades biológicas reais ou presumidas, com ou sem uma contrapartida mental, “psicológica” ou, digamos assim, consciente. Tais estados e processos mentais não estão lá no início. A vida do indivíduo desenvolve-se a partir de outra coisa, a saber, a partir de uma parceria psicossomática estabelecida pela elaboração imaginativa das funções corpóreas, dos instintos, sensações e sentimentos, elaboração esta que, para bem funcionar, requer a presença dos cuidados maternos. Para Winnicott, o binômio natureza e cultivo tomou o lugar da polaridade ortodoxa entre um sujeito (impulsionado por seus instintos) e seus objetos.
No entanto, de certo modo, Winnicott estava voltando a Freud, pois não lhe parecia haver sentido algum em falar de Édipo em termos de objetos parciais e internos. Em Natureza humana ele trata o complexo de Édipo como parte do problema do “manejo do primeiro relacionamento triangular, a criança sendo movida pelos recém-estabelecidos instintos de natureza genital, característicos do período entre os 2 e os 5 anos” (1988, p. 49).
Não há, portanto, qualquer legitimidade nas tão freqüentes alegações de que Winnicott estaria fugindo do erótico para a primeira infância (cf. Phillips 1988, p. 152). Winnicott não parece fugir de nada, pelo contrário, ele está enfrentando um problema que a psicanálise tradicional tentou evitar, a saber, o fato de que a teoria freudiana dos problemas sexuais implicados na situação edípica não dá conta de dificuldades que surgem no relacionamento dual entre as mães e seus bebês. Nenhum dos esforços posteriores de estender a situação edípica e a teoria sexual a ela relacionada (teorias essas rejeitadas pelo próprio Freud, O. Fenichel e Anna Freud, entre outros) produziu os resultados desejados. Tais extensões eram teoricamente degenerativas, quando não destituídas de sentido:

A meu ver, algo se perde no termo “complexo de Édipo” se o aplicamos a estágios anteriores, em que existem apenas duas pessoas envolvidas na relação e a terceira pessoa ou objeto parcial é internalizado, um fenômeno da realidade interna. Não posso atribuir qualquer valor a esse uso do termo “complexo de Édipo” (e agora trata-se de uma questão semântica) em que um ou mais dentre os componentes do trio são objetos parciais. No complexo de Édipo, ao menos para mim, cada uma das três partes do triângulo é uma pessoa inteira, não apenas do ponto de vista do observador, mas também e especialmente do ponto de vista da criança. (1988, p. 49, grifo meu)

Winnicott não se limitou a conservar o complexo de Édipo tardio proposto por Freud. Ele inclusive levou o conceito um passo adiante, introduzindo, por exemplo, uma nova explicação para as origens do medo à castração. Esse medo, diz ele, “revela-se uma bem-vinda alternativa para a agonia da impotência”, que caracteriza a fase genital do desenvolvimento sexual, em que “o desempenho da criança é deficiente, e a criança deve esperar (até a puberdade, conforme sabemos) pela capacidade de tornar realidade o sonho” da relação genital com a mãe (1988, p. 44). Repito: é um grave erro, ainda que muito freqüente, a idéia de que Winnicott foge da sexualidade em direção à primeira infância. O que ele comprovadamente faz é colocar cada um desses momentos em seu devido lugar no processo do crescimento pessoal, e apontar com precisão qual distúrbio se origina de cada um deles.

10. A generalização-guia de Winnicott: a teoria do amadurecimento emocional

A generalização norteadora da psicologia das psicoses proposta por Winnicott é inquestionavelmente sua teoria do desenvolvimento emocional ou pessoal:

A fim de examinar a teoria da esquizofrenia é preciso que estejamos de posse de uma eficiente teoria do crescimento emocional da personalidade. [...] O que devemos fazer é assumir uma teoria geral de continuidade, de uma tendência inata em direção ao crescimento e à evolução pessoal, e uma teoria da doença mental como uma parada no desenvolvimento. (1989a, p. 194)

O texto citado torna explícito que o problema científico central de Winnicott é a esquizofrenia infantil, e que sua generalização-guia é a teoria do amadurecimento emocional. Esse ponto é enfatizado em quase todos os seus trabalhos. O estudo da esquizofrenia e a teoria do crescimento pessoal exercem o mesmo papel paradigmático que a teoria da sexualidade para a compreensão e o tratamento das psiconeuroses dentro do paradigma freudiano de “três corpos”:

Posso dizer também que a formulação do desenvolvimento do bebê e da criança em termos da progressão das zonas erógenas, que nos serviu tão bem ao tratarmos das psiconeuroses, não é tão útil no contexto da esquizofrenia como o é a idéia da progressão da dependência (inicialmente quase absoluta) à independência [...]. (1989a, p. 194)

Semelhantemente à teoria da sexualidade de Freud, a teoria winnicottiana da progressão da dependência à independência é uma generalização empírica e não uma especulação metapsicológica ou de algum outro tipo. Sua construção inicial ocorreu a partir do material clínico fornecido pelas crianças deprivadas, e seu desenvolvimento consistiu na sua aplicação à teoria dos relacionamentos de dois corpos.
De acordo com a presente interpretação, a teoria do desenvolvimento emocional situa-se no centro mesmo da matriz teórica de Winnicott, e representa uma de suas principais contribuições à psicanálise. Num certo sentido, tal tese é um tanto trivial, visto podermos encontrá-la mais ou menos explicitamente em quase todos os artigos escritos por ele. A todo momento Winnicott acaba por retornar a esse mesmo ponto essencial, de que o seu principal problema era “muito simplesmente o tratamento de crianças psiquiatricamente doentes, e a construção de uma teoria do crescimento emocional do indivíduo humano que fosse melhor, mais precisa e mais útil” (1986a, p. 84). Por curioso que pareça, na literatura secundária essa teoria, enquanto tal, recebeu muito pouca atenção, sendo simplesmente esquecida ou vista como trivial ou redutível ao bom senso psicanalítico.

11. Outros componentes do paradigma winnicottiano

A fim de completar essa reconstrução ainda muito esquemática do paradigma proposto por Winnicott, devo dizer algo sobre seu modelo ontológico do homem, sobre sua heurística e sobre os valores por ele adotados, itens que, no dizer de Kuhn, devem estar presentes em toda matriz disciplinar de qualquer ciência.
Quanto à ontologia, a teoria do amadurecimento emocional de Winnicott baseia-se numa nova concepção do ser humano. De um modo inteiramente inesperado, ele chega ao ponto de definir a sua psicanálise como “o estudo da natureza humana” (1988, p. 1). O que Winnicott tem em vista é a suposição de que “fundamentalmente, todos os indivíduos são essencialmente parecidos, apesar dos fatores hereditários que fazem de nós aquilo que somos e nos tornam diferentes uns dos outros” (1964a, p. 232-3). À primeira vista, essa suposição parece ser antes filosófica do que biológica, o que é reforçado pelo seguinte comentário de Winnicott:

Quero dizer, existem certas características na natureza humana que podem ser encontradas em todas as crianças e em todas as pessoas de qualquer idade; uma teoria compreensiva do desenvolvimento da personalidade humana, desde os primeiros anos da infância até a independência adulta, seria aplicável a todos os seres humanos, independentemente de sexo, raça, cor da pele, credo ou posição social. As aparências podem variar, mas existem denominadores comuns nos problemas humanos. (1964a, p. 233)

Os “denominadores comuns” identificados aqui são de dois tipos, os estruturais e os relativos ao crescimento. Os primeiros são principalmente as necessidades (needs) dos lactentes e das crianças pequenas que “não são variáveis”, sendo “inerentes e inalteráveis” (1964a, p. 179). A tese é expressa da seguinte forma:

As necessidades essenciais das crianças de menos de cinco anos pertencem aos indivíduos respectivos e os princípios não mudam. Essa verdade é aplicável aos seres humanos do passado, presente e futuro, em qualquer parte do mundo e em qualquer cultura. (1964a, p. 184)

Quanto aos denominadores do desenvolvimento, eles são, obviamente, os traços invariantes do crescimento humano. Há uma conexão estreita entre os dois tipos de denominadores, visto que as necessidades são intimamente relacionadas à tendência à integração, isto é, ao crescimento.
Alguns comentadores viram nessas palavras um movimento de retorno ao essencialismo. Mas esse ponto não deve ser exagerado. A natureza humana é algo que, embora invariável, tem um início, sendo a única data certa desse início a da concepção (1988, p. 29). Não é fácil alcançar o verdadeiro sentido do que Winnicott diz aqui. Uma interpretação possível é a de que a natureza humana não é uma essência platônica, mas a estrutura invariante de um tipo muito particular de temporalização que se manifesta na forma de um ser humano que, conforme ele mesmo diz, “é uma amostra, no tempo, da natureza humana”. Apenas isto. De onde parte esse processo de ser? Do não-ser, de lugar algum, da solidão total (p. 131), e não, como disse Freud, de um estado inorgânico. E para onde vai? Novamente, para o não-ser, para lugar algum, para a solidão inicial. “A vida de um indivíduo é um intervalo entre dois estados de não-estar-vivo”, diz ele perto do final do livro Natureza humana. O que importa assinalar aqui é que esses dois estados de não-estar-vivo, que são os dois pontos extremos do intervalo que chamamos “vida humana”, pertencem à natureza humana e podem mesmo ser experienciados. A “experiência do primeiro despertar”, que um ser humano tem no início, lhe dá a idéia de que “existe um estado tranqüilo de não-estar-vivo que pode ser alcançado de modo pacífico por uma regressão extrema” (p. 132). Se assim é, a natureza humana é, em si mesma, a negação de qualquer essência fixa. A única coisa que um ser humano pode ter, enquanto amostra no tempo da natureza humana, é a sua própria história, que acontece devido a uma tendência a “começar a existir, a ter experiências, a construir um ego pessoal, a cavalgar os instintos, e [...] a ter um si-mesmo que em algum momento pode se dar ao luxo de sacrificar a espontaneidade, e mesmo de morrer” (1958a, p. 304), sendo a morte a “marca definitiva da saúde” (1988, p. 12).
Essa é a hipótese ontológica mais importante admitida por Winnicott. Em outras ocasiões, tentei mostrar que a mesma concorda estreitamente com o conceito heideggeriano do homem como um ser-para-a-morte (cf. Loparic 1995 e 1999b). Seja como for, uma coisa é certa: há uma grande diferença entre o conceito de natureza humana de Winnicott e o conceito naturalista adotado por Freud de um aparelho mental comandado por forças instintivas, conceito tomado, como disse antes, da psicologia empírica moderna, e em última instância do conceito filosófico moderno de subjetividade.
Quanto à heurística, Winnicott aceita o método freudiano de pesquisa baseado na transferência. Mas ele modifica o seu sentido ao admitir a transferência, no setting clínico, da relação de dependência à mãe. Mais ainda, Winnicott não admite nenhum tipo de especulação e proíbe que se chegue aos fenômenos “pelas costas”, recorrendo a metáforas. Sua concepção da natureza humana fundamenta-se, como foi dito, numa hipótese muito geral que diz respeito à capacidade humana de ter experiências, e não numa especulação metapsicológica referente à estrutura e ao funcionamento do “aparelho psíquico”.
Em termos de valores, podemos dividi-los em significativos do ponto de vista teórico e do ponto de vista prático. Teoricamente, Winnicott vê a psicanálise como uma ciência, que tem o dever de testar suas hipóteses e de submeter-se ao veredicto dos fatos observados. Como qualquer ciência, a psicanálise deve ser formulada de modo a poder ser submetida ao debate público, por psicanalistas ou outros cientistas de campos a ela relacionados, como a psiquiatria infantil e a pediatria, e pelo público culto de um modo geral. No que diz respeito aos valores práticos, Winnicott reserva um lugar para a sexualidade indevidamente censurada (Freud) e para a dor intrapsíquica causada por conflitos internos (Klein, Fairbairn), mas acredita que os sofrimentos realmente mais graves são aqueles que derivam das necessidades não atendidas, que se originam da necessidade de ser. Exemplos paradigmáticos de dores desse tipo são as “agonias impensáveis” de Winnicott, “impensáveis” por serem anteriores a qualquer representação mental, e “agonias” porque implicam na luta pela continuidade do ser. Esse sofrimento é “primitivo”, mas não é “profundo”, por ter sua origem no relacionamento a dois, prévio à existência de qualquer estrutura representacional no bebê humano.

12. Comparação entre os paradigmas de Freud e Winnicott

Tanto Freud quanto Winnicott concordam que a psicanálise é uma ciência, não uma técnica, arte, filosofia ou religião. Nenhum dos dois a classifica no conjunto das “disciplinas mistas”, como a astrologia ou a alquimia. Ambos a concebem como uma atividade voltada para a resolução de problemas, guiada por situações-problema e suas soluções, e complementada por um arcabouço teórico adicional. Embora as soluções exemplares não sejam submetidas a um questionamento ulterior, não lhes é atribuída uma potência heurística ilimitada. Os dois pensadores acreditam que novos exemplares podem revelar-se necessários a fim de completar a descrição psicanalítica das doenças psíquicas e promover pesquisas futuras.
Entretanto, Freud e Winnicott discordam quanto aos problemas exemplares para a pesquisa psicanalítica e quanto às generalizações empíricas que deveriam ser vistas como linhas mestras. Freud tornou possível a pesquisa normal na psicanálise, convencendo um grupo relativamente pequeno de pessoas a ver todas as situações psicopatológicas como similares ao conflito edípico e a interpretar tais situações em termos da sua teoria da sexualidade. Winnicott, chegando à pesquisa psicanalítica nos anos 20, descobriu que não lhe era possível ver as coisas daquele modo. Ele acabou vendo a situação mãe-bebê como realmente exemplar, o que, por sua vez, forçou-o a desenvolver uma teoria do desenvolvimento emocional, ou seja, uma teoria do binômio “natureza e cultivo”. Esta é, em essência, a mudança de paradigma da qual resulta a diferença entre a psicanálise freudiana, edípica, triangular ou “de três corpos”, adotada pela Escola Britânica (A. Freud, M. Klein, Fairbairn, Bion) – e pela maioria de grupos psicanalíticos franceses (especialmente os lacanianas) – e a psicanálise de Winnicott centrada na relação mãe-bebê, dual ou “de dois corpos”, atualmente aceita por um número crescente de psicanalistas de vários países.
Quanto aos comprometimentos teóricos, as duas psicanálises também diferem radicalmente. Freud, seguindo a tradição kantiana, admitia um certo número de suposições especulativas auxiliares, por ele utilizadas na construção de sua metapsicologia (a psicologia que deveria ir “por trás” da consciência). Winnicott decididamente rejeitou esse modo de teorizar, e limitou suas hipóteses explicativas àquelas referentes a experiências possíveis de pessoas em tratamento, e especialmente de bebês e crianças pequenas. Ele não aceita a redução dos fenômenos pessoais, “subjetivos”, ao ponto de vista da consciência, e muito menos ao ponto de vista do observador. Ele quer, pelo contrário, que esses pontos de vista, embora externos ao fenômeno, captem o modo de ser e de experienciar do paciente, mesmo que este seja um bebê recém-nascido. Nem sempre tal coisa é possível. Nestes casos, o analista deve abster-se de tentar saber o que está acontecendo “atrás da cena”, deve abster-se de fazer metapsicologia e até de teorizar, o que em termos clínicos significa abster-se de interpretar e mesmo de dizer seja lá o que for.
Tanto Freud quanto Winnicott puseram limites às nossas possibilidades de realmente conhecer os “fenômenos inconscientes”. Mas eles não lidam com esses limites da mesma maneira. Freud sente necessidade e liberdade para especular, ou seja, para projetar sobre o inconsciente as propriedades, a dinâmica e as estruturas da subjetividade consciente. Com base em sua experiência com bebês, Winnicott, ao contrário, compreende que esse procedimento não é legítimo, por fazer-nos pensar nos bebês como se fossem adultos, e esquecer o que aconteceu durante o processo de crescimento emocional. O bebê de Winnicott é um ser humano, sim, mas não no sentido de que possamos pensá-lo em termos de fenômenos mentais conscientes. Vistos a partir da perspectiva da teoria do desenvolvimento emocional de Winnicott, os erros teóricos de Freud originam-se da idéia incorreta de que o que está além da consciência poderia ser concebido como sendo semelhante à consciência, como “in-consciente”. Aquilo que nos bebês está para além da consciência não são apenas os processos primários, mas algo que nada tem a ver com qualquer coisa semelhante a mecanismos e forças conscientes. A experiência do bebê de continuar sendo é muito diferente de qualquer estado de consciência. Assim, a verdadeira diferença filosófica entre Freud e Winnicott é a de que enquanto Freud ainda pensa em termos da teoria da subjetividade, iniciada pelos filósofos por volta do século XVII e representada paradigmaticamente por Kant, Winnicott pensa em seres humanos numa chave teórica completamente diferente, que em minha opinião tem uma grande afinidade com a ontologia fundamental de Heidegger, conforme apresentada em Ser e tempo (1927).

13. A herança de Winnicott

Admitindo-se que Winnicott introduziu um novo paradigma, teria ele provocado realmente uma revolução? Kuhn distingue entre “grandes revoluções” e “revoluções em pequena escala”. Sendo a revolução científica “uma forma especial de mudança que envolve um certo tipo de reconstrução dos comprometimentos de um grupo”, não é preciso que ela seja “uma mudança ampla, nem é necessário que ela pareça revolucionária aos que estão fora da comunidade específica, a qual talvez conte com menos de vinte e cinco pessoas” (2000, p. 225). Ora, parece-me que há bem mais que vinte e cinco psicanalistas no mundo dispostos a declarar-se prontos a fazer “pesquisa normal” dentro do paradigma de dois corpos proposto por Winnicott. Tais pessoas poderiam legitimamente denominar-se “winnicottianas”. Estamos, pois, em posição de dizer que está surgindo uma verdadeira comunidade winnicottiana internacional, que poderia perfeitamente mostrar-se capaz de contribuir decisivamente para a pesquisa e a prática globais da psicanálise contemporânea.
Existem algumas objeções padronizadas, muitas vezes repetidas, mas nunca realmente discutidas, quanto à possibilidade de criar uma Comunidade de Pesquisas ou uma Escola Psicanalítica Winnicottianas. Uma delas diz que Winnicott era um tanto avesso a instituições. Isto simplesmente não é verdade, haja vista os seus muitos engajamentos em assuntos institucionais. O que ele rejeitava eram sociedades psicanalíticas transformadas em máquinas de propaganda ou em instrumentos de doutrinação. Mas era-lhe muito grata a idéia de sociedades psicanalíticas abertas à pesquisa científica e ao debate.
A segunda objeção, defendida por exemplo por Charles Rycroft, alega que Winnicott é “demasiadamente idiossincrático para ser assimilado inteiramente ao corpo geral de qualquer teoria científica” (Rycroft 1985, p. 114). Phillips faz eco a Rycroft quando diz que “Winnicott não se tornou sistematicamente coerente recusando-se a sacrificar sua própria criatividade” (1988, p. 99). Considerando a reconstrução do seu paradigma apresentada acima, tal objeção está longe de fazer justiça ao texto winnicottiano, revelando não tanto a preguiça teórica de Winnicott quanto a dos que o criticam. Ora, Winnicott certamente valorizou ao máximo a sua inventividade, mas sua preocupação mais importante enquanto psicanalista e pediatra não era a de cultivar e desenvolver a própria originalidade, mas a de ajudar pacientes psicóticos e crianças deprivadas. A fim de fazê-lo, era preciso que ele procedesse de maneira metódica e coerente, ou, dito de outro modo, cientificamente, não podendo dar-se ao luxo de ser apenas criativo. Isto implicaria em tornar-se intrusivo. Em muitas situações, na verdade, ele limitou-se a esperar, esperar e esperar, sacrificando a sua criatividade e deixando que o paciente fosse criativo. Winnicott precisou, bem entendido, fazer uso de toda a sua inventividade para dar uma forma científica a essa conclusão tão simples, mas, depois disso, ele tinha de agir de acordo com ela, ajudando seus pacientes a inventar suas vidas. Como fizeram tantos outros, Phillips confunde aqui aspectos da obra e da personalidade de Winnicott, prejudicando o entendimento de ambas.
Em terceiro lugar, diz-se que Winnicott não desejava tornar-se um “mestre”. Ele certamente não tinha o desejo de dominar pessoas, dizendo-lhes o que fazer ou o que pensar. No entanto, empreendeu uma atividade fora do comum para divulgar suas idéias oralmente e por escrito. No livro Consultas terapêuticas, por exemplo, ele se propõe a ensinar a técnica do rabisco. A condição para esse ensino é o treinamento em psicanálise. Quando essa condição não é satisfeita, o professor deve selecionar os candidatos considerando um certo número de “qualidades desejáveis”, levando em conta as teses da psicanálise ortodoxa e as posições teóricas e técnicas do próprio Winnicott. Feita a escolha dos candidatos adequados, pode ter início o ensino da técnica das entrevistas terapêuticas. O “material de ensino” são os casos descritos por Winnicott e a teoria do amadurecimento que o guiou nessa descrição. Os casos não devem ser usados como modelos a serem imitados servilmente, mas como pontos de partida para um estudo personalizado:

Do meu ponto de vista, seria satisfatório se o material fosse usado como base para questionamentos, e eu prefiro muito mais esta possibilidade que a de ver as pessoas simplesmente imitando o que apresentei. Como afirmei anteriormente, o trabalho não pode ser copiado porque o terapeuta envolve-se em cada caso como pessoa, não sendo possível, portanto, que duas entrevistas sejam iguais, como aconteceria se elas fossem realizadas por dois psiquiatras. (1971b, p. 9)

Ao mesmo tempo que reconhece que as suas descrições dos casos refletem a sua personalidade, Winnicott lembra que esta não é o único “fator constante” nesse tipo de pesquisa e que, ao realizá-la, ele tinha um outro constante companheiro, a sua teoria do amadurecimento:

A única companhia que tenho ao explorar o território desconhecido de um novo caso é a teoria que carrego comigo e que se tem tornado parte de mim e em relação à qual sequer tenho que pensar de maneira deliberada. Esta é a teoria do desenvolvimento emocional do indivíduo, que inclui, para mim, a história total do relacionamento individual da criança com o seu ambiente específico. (1971b, p. 6; grifo meu)

Os casos apresentados em Consultas terapêuticas não são, portanto, frutos do acaso, nem mesmo tão-somente intuições geniais de um psicanalista criativo, mas, essencialmente, ilustrações de teses teóricas desenvolvidas durante muitos anos de trabalho científico e de uma técnica pessoal, fundamentada nestas últimas (cf. pp. 215, 218 e 220).
Winnicott compara a sua posição de mestre em consultas terapêuticas com aquela do “violoncelista que primeiro trabalha a técnica e depois começa realmente a tocar a música, quando a técnica já está garantida”, sendo movido pelo desejo de “estabelecer a comunicação com aqueles que ainda estão trabalhando a técnica, dando-lhes, ao mesmo tempo, a esperança de que um dia eles virão a tocar música” (p. 6). Winnicott não quer ser “simplesmente imitado”, mas ele nutre o propósito de ensinar o que sabe a fim de que as pessoas possam criar sua própria capacidade de adquirir conhecimentos e trabalhar em psicoterapia por sua própria conta. Seria melhor, admite Winnicott, “que o estudante colhesse o material por si mesmo através do contato pessoal com crianças, em vez de ler as minhas descrições”. Mas ele sabe muito bem que isto nem sempre é possível, sobretudo não para os principiantes (p. 11).
O que temos aqui é uma apresentação sutil do processo de aprendizagem do jogo dos rabiscos, que leva em conta a dimensão pessoal, mas reconhece, ainda assim, que o ensino tem como base uma tradição de pesquisa baseada numa teoria preexistente. No presente caso, trata-se da teoria do desenvolvimento emocional do indivíduo, que é, diz Winnicott, a “espinha dorsal de todo o trabalho aqui apresentado” e encontra-se explicada “numa vasta literatura sobre a matéria” (p. 11). Dizendo-o na linguagem ora adotada, Winnicott escreveu um manual sobre a técnica das entrevistas terapêuticas, tendo como base a sua teoria do desenvolvimento emocional previamente formulada. Portanto, a teoria winnicottiana não apenas pode ser ensinada, como era o seu desejo que ela fosse ensinada aos analistas que estão começando. Em essência, Winnicott concorda inteiramente com a idéia geralmente aceita de que não há outro modo de tornar-se cientista a não ser no interior de uma tradição científica.
Procurei mostrar que há em Winnicott um constante, longo e cuidadoso esforço para resolver um problema clínico: o problema da natureza e da etiologia dos distúrbios psicóticos. Estou disposto a admitir que a solução de Winnicott para esse problema deixou muitas perguntas sem respostas. Entendo, porém, que não pode haver dúvida razoável quanto ao compromisso de Winnicott com a pesquisa científica, realizada através dos métodos adotados pela psicanálise e, em menor grau, pela pediatria e pela psiquiatria. Eu diria que nenhuma dessas disciplinas está em condições muito melhores que a psicanálise. Em todas elas ocorre a luta pela sobrevivência entre teorias rivais. Todas elas se encontram no que Kuhn chamou de “fase pré-paradigmática”, atravessando mais ou menos freqüentemente revoluções de maior ou menor escala. Ainda assim, esse tipo de atividade é geralmente denominado “pesquisa científica”.

Tradução de Davy Bogomoletz, revista pelo autor.


REFERÊNCIAS

Observação: Os textos de Winnicott são indicados de acordo com a bibliografia completa das suas obras, publicada na revista Natureza humana, vol. 1, n. 2, 1999.

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