ERIC VOEGELIN
EVANGELHO E CULTURA
in: The Collected Works of E. Voegelin.
Vol. 12 Published Essays, 1966-1985.
Louisiana State University Press
Baton Rouge/Londres, 1988, pp. 172-212
Tradução Mendo Castro Henriques e Luís Salvador, M.ª Eduarda Barata, Mário Jorge e Nuno Bettencourt
A Comissão Directiva honrou-me com o convite de proferir uma conferência acerca de "Evangelho e Cultura".[1] Se bem compreendi a intenção dos membros da comissão queriam escutar o que um filósofo tem para dizer acerca da dificuldade do Verbo em se fazer ouvir no nosso tempo e, se ouvido, tornar-se inteligível para aqueles que o querem escutar. Porque seria o evangelho vitorioso nas circunstâncias helenistico-romanas da sua origem? Porque atraiu uma élite intelectual que elaborou o significado do Evangelho em termos de filosofia e, deste modo, criou uma doutrina Cristã? Porque pôde esta tornar-se religião do Império Romano? Como pôde a Igreja, atravessado este processo de aculturação, sobreviver ao Império Romano e tornar-se a crisálida, da civilização Ocidental, como lhe chamou Toynbee ? E o que ofuscou esta força cultural triunfante, de modo a que, hoje, as igrejas estão na defensiva contra os movimentos intelectuais dominantes do nosso tempo e abaladas por uma crescente inquietação no seu interior?
Uma ordem de trabalhos impressionante, devo dizer. E, contudo, aceitei-a porque de que serviria a filosofia se nada tivesse para dizer acerca das grandes questões que os homens do nosso tempo lhe podem, justificadamente, colocar? Mas se considerarmos a amplidão do desafio, compreendereis que não posso prometer mais do que uma tentativa humilde para justificar a confiança da Comissão e para salvar a honra da filosofia.
I
Orientei as questões iniciais para o tema do evangelho e da filosofia e, começarei por apresentar uma instância antiga e outra recente em que o tema se tornou tópico.
Ao absorver a razão na forma da filosofia helenística o evangelho da ekklesia tou theou primitiva tornou-se a Cristandade da Igreja. Se a comunidade do evangelho não tivesse penetrado na cultura do tempo ao entrar na sua vida da razão, teria permanecido uma seita obscura e provavelmente desapareceria da história; conhecemos o destino do Judeo-Cristianismo. A cultura da razão, por sua vez, atingira uma fase em que era sentida como um impasse por jovens sedentos para os quais o evangelho parecia oferecer a resposta à busca filosófica da verdade. A introdução ao Diálogo de Justino documenta esta situação. Na concepção de Justino, o mártir, (morto cerca de 165 d. C.), o evangelho e a filosofia não se apresentam ao pensador em alternativa, nem são aspectos complementares da verdade que o pensador tem de soldar numa verdade completa- na sua concepção, o Logos do evangelho é o mesmo Deus que o fogos spermatíkos da filosofia, embora numa fase posterior da sua manifestação na história. O Logos opera no mundo desde a criação; todos os homens que viveram segundo a razão, quer gregos (Heráclito, Sócrates, Platão), ou bárbaros (Abraão, Elias), foram num certo sentido Cristãos (Apologia 1, 46). Donde, que a Cristandade não seja uma alternativa à filosofia, mas a própria filosofia no seu estado de perfeição; a história do Logos cumpre-se através da incarnação do Verbo em Cristo. Para Justino a diferença entre evangelho e filosofia é uma questão de fases sucessivas na história da razão.[2]
Tendo presente esta apresentação muito antiga do tema, iremos agora examinar um pronunciamento recente. Extraí-o do Novo Catecísmo de 1966, encomendado pela hierarquia dos Países-Baixos e convencionalmente chamado o Catècísmo Holandês. O seu capítulo de abertura tem o título "O Homem Questionador"; e na primeira página encontramos a seguinte passagem:
"Este livro ... começa por nos interrogar sobre qual é o significado do facto de que nós existimos. Isto não significa que nós começamos por tomar uma atitude não-Cristã. Significa simplesmente que nós, também, como Cristãos somos homens com mentes questionantes. Devemos estar sempre prontos e capazes de explicar como a nossa fé dá uma resposta à questão da nossa existência."[3]
A passagem, embora pouco polida, é filosoficamente muito relevante. A sua rudeza bem-intencionada esclarece bastante as dificuldades em que as igrejas se encontram hoje. Note-se acima de tudo a dificuldade que a Igreja tem face aos seus próprios crentes que querem ser Cristãos à custa da própria humanidade. Justino começou como uma mente questionante e, depois de ter experimentado as escolas filosóficas da época, deixou que a sua busca se apaziguasse na verdade do evangelho. Hoje, a situação está invertida. Se os crentes estão em descanso num estado de fé que não põe perguntas, o seu metabolismo intelectual tem de ser estimulado pela lembrança que o homem é suposto questionar-se e, que um crente incapaz de explicar como a sua fé é uma resposta ao enigma da existência, pode ser um "bom-Cristão", mas é um homem questionável. E podemos fortalecer a lembrança recordando, delicadamente, que nem Jesus nem os companheiros a quem Ele transmitiu a palavra sabiam ainda que eram Cristãos; o evangelho oferecia a sua promessa, não a Cristãos, mas aos pobres em espírito, ou seja, a mentes questionantes, embora situados num nível culturalmente menos sofisticado que o de Justino. Por trás da passagem emerge o conflito, não entre o evangelho e a filosofia, mas antes entre o evangelho e a sua posse inquestionável como doutrina. Os autores do catecismo não encaram este conflito com ligeireza; antecipam, mesmo, resistência à sua tentativa de encontrar a humanidade comum dos homens no facto de questionar o significado da existência; e protegem-se contra uma incompreensão precipitada assegurando o leitor que não pretendem "tomar uma atitude não-Cristã". Assumindo que ponderaram rigorosamente cada afirmação que escreveram, esta cláusula defensiva revela um ambiente onde não é habitual pôr questões, onde o carácter do evangelho como resposta foi tão nocivamente obscurecido pelo seu endurecimento em doutrina estanque que o levantamento da questão, a que o evangelho responde, pode ser suspeito como "atitude não-Cristã". Se é esta a situação, contudo, os autores têm boas razões para estarem inquietos. Porque o evangelho como doutrina que se pode pegar e ser salvo, ou largar e ser condenado, é letra morta; encontrará indiferença, se não mesmo desprezo, entre mentes questionantes fora da Igreja, bem como na inquietação do crente que será insuficientemente pouco-Cristão por ser um homem que se interroga.
A intenção do Catecismo, restaurar a mente questionante na posição que lhe é ' devida, é o primeiro passo importante para restituir ao evangelho a realidade que ele perdeu através do endurecimento doutrinário. Ademais, por muito hesitante e frágil que possa ser a execução, esta tentativa é um primeiro passo para readquirir a vida da razão representada pela filosofia. Tanto o chamado erotismo platónico da busca (zetesís) e a atitude aporética de Aristóteles, intelectualmente mais agressiva, reconhecem no "homem questionante" o homem movido por Deus a pôr as questões que o conduziram à causa do ser (arché). A própria busca é a evidência da inquietação existencial; no acto de questionar, a experiência humana de tensão (tasís) para o fundamento divino irrompe na palavra da interrogação como uma oração pelo Verbo da resposta. Questões e respostas estão intimamente relacionadas; a busca movese no que Platão designou por metaxy, a realidade interina da pobreza e da riqueza, do humano e do divino; a questão é conhecimento, mas este conhecimento é ainda o tremor de uma questão que pode ou não alcançar a verdadeira resposta. Esta busca luminosa em que a procura da resposta verdadeira depende do colocar a verdadeira questão, e o pôr da verdadeira questão depende da apreensão espiritual da verdadeira resposta, é a vida da razão. Ao filósofo certamente que agrada o aviso do Catecismo para que a fé se possa justificar como uma resposta a questões acerca do significado da existência.
Questão e resposta são sustentadas conjuntamente e relacionadas entre si pelo acontecimento da busca. O homem, contudo, embora verdadeiramente questionador, também pode deformar a sua humanidade ao recusar pôr questões ou ao carregá-las com premissas delineados para tornar a busca impossível. O evangelho, para ser ouvido, exige ouvidos que possam ouvir-, a filosofia não será a vida da razão se a razão do questionador estiver depravada (Rom. 1, 28). A resposta não ajudará o homem que perdeu a questão e as dificuldades da época presente são caracterizadas pela perda da questão, mais do que da resposta, como bem viram os autores do Catecismo. Será necessário, portanto, recuperar a questão que o filósofo via respondida no evangelho na cultura helenístico-romana.
Uma vez que a questão se refere à humanidade do homem, permanece idêntica ao que foi no passado; mas hoje está tão distorcida pelo processo Ocidental de desculturação que deve ser, primeiro, desentranhada da linguagem intelectualmente desordenada em que nós falamos indiscriminadamente do significado da vida, ou do significado da existência, ou do facto da existência que não tem significado, ou do significado que deve ser atribuído ao facto da existência, etc.... como se a vida fosse um facto e o significado uma propriedade que pode ou não possuir.
Ora a existência não é um facto. Se alguma coisa é, a existência é o nãofacto de um movimento perturbante da realidade interina, da ignorância e do conhecimento, do tempo e da intemporalidade, da imperfeição e perfeição, da esperança e do cumprimento e, enfim, da vida e da morte. Da experiência deste movimento, da ansiedade de perder a direcção correcta nesta interinidade de escuridão e luz, nasce o inquérito acerca do significado da vida. Mas nasce porque a vida é experimentada como a participação humana num movimento cuja direcção pode ser encontrada ou perdida. Se a existência do homem não fosse um movimento mas um facto, não só não teria qualquer significado mas nem sequer se colocaria a questão do significado. A conexão entre o movimento e investigação torna-se mais compreensível se considerarmos a sua deformação por alguns pensadores existencialistas. Um intelectual como Sartre, por exemplo, encontra-se envolvido no conflito sem saída entre assumir a facticidade sem sentido da existência e a busca desesperada para lhe atribuir um significado a partir dos recursos do seu eu: pode separar-se da investigação do filósofo, ao assumir que a existência é um facto; mas não pode escapar à sua inquietação existencial. Se a busca fôr proibida de se mover na realidade interina, e se, por consequência, não puder ser dirigida ao fundamento divino do ser, deve ser dirigida para um significado imaginado por Sartre. A busca, pois, impõe a sua forma mesmo quando perdeu substância; o facto imaginado da existência não pode permanecer sem significado, mas deve tornar-se a rampa de lançamento para o Ego do intelectual.
Esta destruição imaginativa da razão e da realidade não é uma idiossincrasia de Sartre; tem um carácter representativo na história, porque é, de facto, uma fase num processo de pensamento cuja modalidade foi instaurada por Descartes. As Meditações, é certo, ainda pertencem à cultura da busca, mas Descartes deformou o movimento, ao coisificar os parceiros como objectos de um observador, do género de Arquimedes, situado fora da busca. Sobre a concepção da nova metafísica doutrinária, o homem que se experimenta a si próprio como questionados, aparece como uma res cogitans cujo esse deve ser inferido do seu cogitare,- e o Deus por cuja resposta nós esperamos e aguardamos é convertido no objecto de uma prova ontológica da sua existência. Ademais, o movimento da busca, o erotismo da existência na realidade interina do divino e do humano, tornou-se um cogitare demonstrativo dos seus objectos; a luminosidade da vida da razão foi modificada na claridade do raisonnement. Assim, da realidade da busca desintegrada nas Meditações, emergem os três espectros que pairam no cenário Ocidental até hoje. Primeiro, vem o Deus que foi desligado da busca e ao qual já não se permite que responda às questões: vivendo retirado da vida da razão, foi empurrado para objecto da fé não razoável; de tempos a tempos declara-se que está morto. Existe, em segundo lugar, o cogitare do observador, tipo Arquímedes, exterior ao movimento: foi engolido no monstro da Consciência de Hegel que produz um Deus, homem e história próprias; este monstro ainda está empenhado em luta desesperada, para que o seu movimento dialéctico seja aceite como real, no lugar do movimento real da busca na realidade interina. E, finalmente, existe o homem do cogito ergo sum cartesiano: este tem-se rebaixado consideravelmente no mundo, reduzido como está ao facto e figura do sum ergo cogito sartreano; o homem que em tempos podia demonstrar não só a si próprio mas mesmo a existência de Deus, tornou-se o homem que está condenado a ser livre e que pretende ser preso por editar um jornal maoísta.
As reflexões acerca da busca e da sua deformação no nosso tempo, foram suficientemente longas para permitir algumas conclusões acerca da questão e da sua recuperação. Antes de mais, os males da desculturação afectaram a filosofia, pelo menos tanto como afectaram o evangelho. Uma aculturação através da introdução da filosofia contemporânea na vida da Igreja, a façanha dos patres no ambiente helenístico-romano, seria hoje impossível, porque nem as igrejas têm uso para a razão deformada nem os representantes da deformação põem as questões a que o evangelho ofereceria a resposta. Em segundo lugar, contudo, a situação não é assim tão desesperada como pode parecer, porque a questão está presente mesmo no tempo em que a razão é deformada. A busca impõe a sua forma mesmo quando a sua substância é rejeitada; os filosofemos dominantes do nosso tempo são, claramente, resíduos da busca. A desculturação não constitui uma nova sociedade, ou uma nova idade na história; é um processo no interior da nossa sociedade, notário na consciência pública e suscitando resistência. De facto, nestas linhas, estou precisamente a analisar o fenómeno da razão deformada, reconhecendo-a como tal, segundo os critérios da razão não deformada; e consigo fazê-lo porque a cultura Ocidental da razão ainda está suficientemente viva, apesar das aparências, para fornecer os critérios para caracterizar a sua própria deformação. Esta última observação permitirá, em terceiro lugar, pôr de parte a propagação ideológica dos processos de desculturação como sendo uma "nova era". Nós não vivemos numa era "pós-Cristã", "pós-filosófica", "pós-pagã", ou na era de "novo-mito" ou do "utopismo", mas simplesmente num período de desculturação massiça através da desculturação da razão. A deformação não é uma alternativa ou um avanço para além da formação. Pode falar-se de um avanço diferenciador, na luminosidade da busca, do mito para a filosofia, ou do mito para a revelação; mas não se pode falar de um padrão de progresso diferenciador da razão para a desrazão. Em quarto lugar, contudo, a desculturação do Ocidente é um fenómeno histórico persistente durante séculos- os destroços grotescos em que se apresenta, hoje, quebrada a imagem de Deus, não constituem uma opinião errada acerca da natureza do homem mas um resultado do processo secular da destruição. É preciso compreender este aspecto da situação, se não quisermos ser encaminhados para variedades de acção que, embora sugestivas, dificilmente poderiam ser curativas. A questão da busca não pode ser recuperada nos destroços; a sua recuperação não é uma questão de pequenas reparações, de pôr um remendo aqui ou acolá, de criticar este ou aquele autor cuja obra é uma sintoma de desculturação mais do que a sua causa, etc. Nem o conflito será resolvido pelos famosos diálogos em que os parceiros só não trepam para cima dos dedos dos pés uns dos outros, menos por causa de excesso de boas maneiras do que por ignorarem os dedos que devem ser pisados. E, menos ainda se poderá conseguir ao contrapor a doutrina certa à doutrina errada, pois a endoutrinação é precisamente o dano que foi infligido no movimento da busca. Não existiriam doutrinas hoje da existência deformada se a busca na filosofia e no evangelho não tivesse sido escondida pela endoutrinação radical da Idade-Média tardia, tanto na metafísica como na teologia.
II
Apenas a vida milenar da razão pode dissolver a sua deformação secular. Não temos de permanecer no ghetto dos problemas contemporâneos ou modernos, prescritos pelos deformadores. Se a destruição remonta a séculos, nós podemos recuar milénios para restaurar a questão tão vastamente danificado no nosso tempo.
A questão de busca do significado da vida encontra a sua expressão clássica, na Grécia do século V, quando Eurípedes desenvolve o simbolismo do duplo significado da vida e da morte:
"Quem sabe se viver é estar morto, e estar modo é viver. "
Platão resume as linhas de Eurípedes no Górgías (492e) e elabora o simbolismo no mito do juizo dos mortos que conclui o diálogo. Jesus resume o simbolismo na afirmação: "Pois aquele que quiser salvar a sua vida, (psychen) vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la. De facto, que aproveitará ao homem se ganhar o mundo inteiro mas arruinar a sua vida?" (Mat 16, 25-26). Paulo, finalmente, escreve: "Pois se viveres segundo a carne, morrereis, mas se pelo Espírito fizerdes morrer as obras do corpo, vivereis" (Rom 8, 13). As variantes podiam ser multiplicadas. O mais antigo caso conhecido, embora ainda apresentado em linguagem do mito cosmológico, encontra-se num poema egípcio do terceiro milénio tardio a.C. Mas deve-se recordar, devido à sua proximidade ao evangelho, o aviso do Sócrates platónico, que segue o mito do juizo dos mortos no final da República (621 b-c): "O mito foi salvo ... e salvar-nos-á se nos deixarmos persuadir ... e mantivermos a nossa alma (psychen) impoluta. Se vos deixardes persuadir por mim, acreditaremos que a alma é imortal ... e seguiremos sempre o caminho para o alto, buscando a justiça com sabedoria, de modo a tornarmo-nos caros a nós mesmos e aos deuses." Paul Shorey tem razão, na sua tradução da República, em acrescentar em nota de rodapé à frase "manteremos a nossa alma impoluta", passos paralelos de Tiago 1, 27 e 2 Pe. 3, 14.
Existe uma orientação na existência; e conforme a sigamos ou não, a vida pode ser morte, e a morte pode ser vida eterna. Os filósofos estavam conscientes de terem adquirido esta intuição de um modo representativo para a humanidade. A questão expressa pelo duplo significado da vida e da morte é a questão da existência de cada um, não apenas a dos filósofos. Por isso, na República , o mito que foi salvo e que é narrado por Sócrates, é atribuído a Er o Panfílio, o homem de todas as tribos, ou da tribo de todos, que regressou da morte e contou aos seus companheiros o juizo que testemunhara no mundo infernal. Quem quer que seja pode perder-se no emaranhado da existência e, tendo retomado da sua morte à vida, contar o conto do seu significado. Além de mais, por detrás do conto permanece a autoridade da morte representativa sofrida por Sócrates em nome da verdade. A Apologia conclui com as irónicas palavras de despedida ao juiz: "Mas agora chegou o tempo de partir. Eu parto para morrer, e vós para viver. Mas para quem está reservado o melhor lote é desconhecido para todos, excepto para o Deus".
Esta célebre intuição tornou-se socialmente efectiva através do monumento que Platão ergueu na sua obra. Já no tempo de Cristo, quatro séculos mais tarde, tornara-se a autocompreensão do homem na cultura da ecúmena helenístico-romana; e, de novo, a verdade universal da existência teve de ser ligada a uma morte representativa: o dramático episódio de Jo 12 é o equivalente cristão à Apologia do filósofo. O evangelista narra a entrada triunfante de Jesus em Jerusalém. A história de Lázaro espalhou-se, e a multidão acotovela-se para ver e saudar o homem que pode erguer os mortos à vida. As autoridades judaicas querem tomar medidas contra quem lhes está a roubar o povo, mas de momento têm de ser cautelosas: "Vedes que nada podeis fazer; Vede: o mundo (kosmos) corre atrás dele!" O mundo das autoridades judaicas, contudo, não é o mundo ecuménico que Jesus quer atrair para si. Apenas quando um grupo de Gregos se aproxima de Filipe e de André, e estes apóstolos com nomes Gregos contam a Jesus acerca do desejo dos Gregos de o ver, é que ele pode responder: "Chegou a hora para o Filho do Homem ser glorificado" (12, 23). "Vêm aí os Gregos" - a humanidade está pronta para ser representada pelo sacrifício divino. O Jesus Joanino pode, por consequência, continuar:
"Muito solenemente vos digo: a menos que uma semente de trigo cair na terra e morrer, permanece apenas uma semente de trigo; mas se morrer, trará muito fruto. Quem ama a sua vida (psychen) perdê-la-á; mas quem odeia a sua vida neste mundo (kosmos), mantê-la-á para a vida eterna. Se alguém me servir, deve-me seguir, e onde eu estiver, o meu servo também estará. Se alguém me servir, o meu Pai honra-lo-á."[4]
Nos Evangelhos Sinópticos, tal como no Górgias e na República, a questão da vida e da morte aparece, apenas, sob a forma de intuição, persuasão, e aviso (Mat 10, 39; 16,25; Luc 14,26; 17,33); em Jo 12, tal como na Apologia, é vivida através de um sofredor representativo, de modo que a intuição torna-se a verdade da existência na realidade através da autoridade dos mortos. Mesmo o Daímonion que sustivera Sócrates na sua caminhada, na medida em que não ergue os seus avisos tem um equivalente na reflexão de Jesus:
"Agora a minha alma está inquieta. Que deverei eu dizer Pai, salva-me desta hora? Não, porque para este propósito, eu cheguei a esta hora. Pai, que o teu nome seja glorificado."[5]
A esta prece de submissão pela alma inquieta, o céu respondeu com um trovão - os historiadores ainda não estão seguros se o fazedor do trovão era Zeus ou Yahweh - e para aqueles que tinham ouvidos para ouvir, o trovão veio como uma voz: "Glorifiquei-o e hei-de glorificá-lo de novo". Assegurado pela voz que clama, Jesus pôde concluir:
"Agora o juízo (krísis) chegou a este mundo (kosmos), e agora o governante deste mundo será repelido. E eu, quando for elevado da terra, atrairei todos os homens a mim.,[6]
O aparecimento dos Gregos é peculiar a João; não os encontramos nos Evangelhos Sinópticos. A interpretação que segui assenta na forma literária de João de permitir que uma narrativa de eventos, ou sinais, seja seguida pela exposição do seu significado através da resposta de Jesus; mas o leitor deve ter consciência que a maior parte dos comentadores tende a diminuir o papel dos Gregos, de modo a assimilar a intenção de Jol2 à tradição Sinóptica. Contudo, não vejo razão pela qual ao autor se deveria negar a cortesia de ver a sua obra literária tomada a sério, segundo a letra do texto, só porque o seu trabalho é um Evangelho. O episódio de Jol2 expressa uma concepção helenístico-ecuménica do drama da existência, culminando na morte sacrificial de Cristo. Recebe a sua atmosfera peculiar do jogo pré-gnóstico com os significados do termo kosmos. No uso das autoridades judaicas, o kosmos que corre atrás de Jesus (12, 19) não significa senão tout /e monde. Com o aparecimento dos Gregos (12, 20-22), o significado cresce para a humanidade ecumémica. Com o ódio à vida de cada um (psyche) neste mundo (12, 25), o kosmos torna-se um habitat do qual esta vida deve ser salva para a eternidade. Nas palavras conclusivas (12, 31), o kosmos é o domínio do príncipe deste mundo de cujo reino Jesus, quando fôr "elevado", atrairá todos os homens para si, deixando o archon satânico como um governante sem povo. Jesus tornou-se o rival do archon numa luta cósmica pelo governo dos homens. Mas não será isto gnosticismo? Seria temeridade aceitar tal suposição, porque João conduz todo o episódio, incluindo tanto a narrativa como a sua exegese através da resposta de Jesus, para a posição literária de uma narrativa à qual se sobrepõe uma nova resposta exegética de Jesus. Nesta resposta sobreimposta, Jesus declara (ekrazen), enfaticamente-.
"Eu, a Luz, vim ao mundo (kosmos) para que quem acreditar em mim não permaneça nas trevas. Se alguém ouvir as minhas palavras e não as seguir, Eu não o julgo, porque eu não vim para julgar o mundo (kosmos), mas para salvar o mundo (kosmos). Quem me rejeitar, e não aceitar as minhas palavras, tem o que julga: A palavra que proferi será a palavra que o julgará no último dia."[7]
O significado de kosmos reverte do habitat para os habitantes que não são para ser evacuados mas sim salvos. Da luta cósmica do archon e do Redentor regressamos ao drama da existência - a luz da palavra penetrou nas trevas, salvando aqueles que acreditaram nela, e trouxe juízo para aqueles que lhe fecharam os olhos. Nesta fase da análise, seria difícil encontrar grande diferença de função entre o mito acerca do juizo final narrado por Er o Panfílio em Platão ou o último dia de João.
A busca na realidade interina move-se da questão da vida e da morte para a resposta da narrativa salvífica. A questão, contudo, não nasce de um vácuo, mas de um campo de realidade, e aponta para respostas de um certo tipo; e a narrativa salvífica, seja ela o mito panfílio de Platão ou o Evangelho de João, não é uma resposta arbitrária, mas corresponde de um modo definido à realidade da existência em que a questão é pressuposta como verdadeiramente experimentada. Questão e resposta relacionam-se intimamente entre si num movimento de um todo inteligível. Esta relação, que constitui a verdade do conto, exige uma nova análise.
O significado duplo da vida e da morte é o simbolismo gerado pela experiência humana de ser atraído em várias direcções, entre as quais tem de ser escolhida a correcta. Platão identificou a pluralidade de atracções, a necessidade de escolher entre elas, e a possibilidade de conhecer a correcta, como o complexo de experiências que resultam da questão da vida e da morte. De acordo com a variedade de atracções, pode-se distinguir uma variedade de modos existenciais e de hábitos conforme seguimos uma ou outra. "Quando a opinião conduz através da razão (fogos) para o melhor (ariston) e é mais poderosa, o seu poder é chamado prudência (sophrosyne); mas quando o desejo (ephitymia) nos arrasta (helkeín) para os prazeres e governa entre nós, o seu poder é chamado excesso (hybris)" (Fedro 238a). As forças que nos puxam estão em conflito, arrastando-nos para cima ou para baixo. Um jovem pode ser "atraído (helkein) para a filosofia" (Repúblíca 494e), mas a pressão social pode desviá-lo para uma vida de prazer, ou de sucesso na política. Se seguirmos a segunda atracção, contudo, a questão do significado ainda não fica arrumada, porque a primeira atracção continua a ser experimentada como parte da existência. Ao seguir a segunda atracção o jovem não transforma a sua existência num facto isento de questões, mas num determinado percurso de vida, nitidamente questionável. Sentirá a vida que leva como não sendo "a sua vida própria e verdadeira" (495c) viverá num estado de alienação. O jogo das atracções, por consequência, é iluminado pela verdade. Quem seguir o percurso erróneo não o converte por isso no correcto, mas desvia a sua existência para a inverdade. Esta luminosidade da existência, conferido pela verdade da razão, precede todas as opiniões e decisões acerca da atracção a ser seguida. Ademais, permanece viva como o juízo da verdade da existência, sejam quais forem as opiniões que possamos efectivamente formar acerca delas.
Os termos buscar (zeteín) e atrair (helkeín) não indicam dois movimentos diferentes mas simbolizam a dinâmica na tensão da existência, nos pólos humano e divino. Num dos movimentos, experimenta-se uma busca do humano, um ser atraído pelo pólo divino. Evito deliberadamente a linguagem de 'homem' e 'Deus' nesta fase da análise, porque estes símbolos estão hoje carregados com os mais diversos conteúdos doutrinais que derivados de intuições que, por seu turno, resultam de um movimento existencial a que nós chamamos filosofia clássica. É da acção deste movimento que emerge o homem como o questionador, aquele a quem Aristóteles chama aporon e thaumazon (Metafísica 982b1 8), e Deus como o motor que atrai ou puxa o homem para si próprio, como se vê no livro X das Leis de Platão ou na Metafísíca de Aristóteles. Estas novas intuições acerca da humanidade e da divindade de Deus, a assinalar a fase final da busca clássica, não devem ser projectadas para o seu começo como premissas doutrinais; nesse caso, a realidade do processo, de que os símbolos de resposta derivam a sua verdade, seria eclipsada, senão mesmo destruido. Há um longo caminho desde as experiências compactas que geram os mortais e os imortais de Homero até ao movimento diferenciado da existência na realidade interina e que Aristóteles caracteriza como athanatízein, como um acto de imortalizarão (Ética Nicomaqueia X.7, 8) - um tempo histórico quase tão longo como o caminho da filosofia clássica até ao Evangelho. Ora, os dois componentes do movimento, nem sempre estão no equilíbrio em que Platão os mantém na construção dos diálogos, onde demonstra, de acordo com a finalidade pedagógica da persuasão, o processo e os métodos de buscar que conduzem à resposta correcta. Por detrás dos diálogos, permanece o autor que encontrou a resposta antes de se empenhar no trabalho de composição literária-, e o seu modo de buscar, tal como o de Sócrates, não é necessariamente a via da persuasão dialógica. O que acontece na vida do homem que emerge do movimento da existência como o paídagogos dos seus companheiros, pode ser comprimido em episódios semelhantes aos da alegoria da caverna. Aí Platão permite que o homem, amarrado com o rosto virado para o muro, seja arrastado (helkein) à força para a luz (República 515e). A tónica reincide na violência sofrida pelo homem na caverna, na sua passividade e mesmo resistência a ser convertido (periagogê), de tal modo que a ascensão para a luz é menos uma acção de buscar do que um destino infligido. Se aceitarmos este sofrimento de ser arrastado como descrição realística do movimento, então a alegoria evoca a paixão do Sócrates que a narrou; o ser arrastado para a luz pelo Deus; o facto de sofrer a morte quando regressou para permitir que os seus companheiros partilhassem a luz; a sua ascensão dos mortos para viver como narrador da narrativa salvífica. Mais; esta paixão da alegoria evoca, se posso antecipar, a paixão da conversão infligido pela visão de Cristo ao Paulo que resiste na estrada para Damasco.
Na experiência de Platão, o sofrimento obscurece tão fortemente a acção na busca que se torna difícil de traduzir este pathos no seu tauta ta pathe en hemin (Leis 644e), "todos estes pathe (paixões) que em nós existem". Será que este pathos exprime apenas a experiência da atracção (helkein) que dá orientação à busca? Ou será que Platão quer reconhecer este movimento como tão fortemente marcado pelo sofrimento que os termos experiência e paixão são quase sinónimos? O contexto em que esta passagem aparece, o mito do apresentador dos fantoches, não deixa dúvida que a incerteza é causada pela pesquisa platónica do campo da tensão existencial, para além do movimento da busca que se cumpre na narrativa salvífica. Porque quanto mais certo estamos de conhecer a verdadeira resposta à questão da vida e da morte, tanto mais enigmático é haver a própria questão. Por que razão está o prisioneiro amarrado à caverna, em primeiro lugar? Por que razão a força que o prende tem de ser superada por uma contraforça que o converte? Porque deve o homem que ascende à luz regressar à caverna para sofrer a morte nas mãos daqueles que o irão abandonar? Porque não a abandonam todos, de modo a que a caverna como local de existência seja abandonada? Para além da busca que recebe direcção da atracção (helkein) da razão, estende-se o campo existencial mais vasto da "contra-atracção", da anthelkeín (Leis 644-45). Por detrás da questão a que a narrativa salvífica responde, emerge a questão mais sombria da questão da existência que permanece mesmo depois da resposta ter sido encontrada. A estas questões que resultam da estrutura da "contra-atracção" na existência, Platão deu a sua resposta no simbolismo do homem como fantoche criado pelos deuses, "possivelmente como um brinquedo, possivelmente com um propósito mais sério, mas que nós não podemos saber", e atraído por várias cordas para acções opostas. Cabe ao homem seguir, sempre, o sagrado cordão de ouro do juizo (logismos) e não as outras cordas dos metais mais vis. Assim, a componente da acção humana não desapareceu do movimento mas tem de ser inserida no drama mais vasto da atracção e da contra-atracção. Como o puxão do cordão de ouro é suave e sem violência, precisa, para prevalecer na existência, do apoio do homem que deve contrariar (anthelkein) o contra-puxão das cordas mais vis. O eu do homem (autos) é introduzido como a força que deve decidir no conflito das atracções, através da cooperação com a sagrada atracção da razão (fogos) e do juizo (logísmos). Em resumo: aos questionadores rebeldes que se querem queixar acerca da estrutura da existência, àcerca da caverna que persiste em exercer a sua atracção, mesmo quando se encontrou a narrativa salvífica, a esses é dada a mesma resposta brusca que receberam de um grande realista anterior, Jeremias:
"Ouvi! Aquilo que eu construí, deitarei abaixo; e aquilo que eu plantei , destruirei. E vós que buscais, ainda, grandes coisas para vós próprios, Não as busqueis! Porque ouvi! Posso amaldiçoar toda a carne -diz Yahweh - Mas entrego-vos a vossa vida, como prémio de guerra, em qualquer lugar para onde fores."[8] (45, 4-5)
A vida é oferecida como um despojo de guerra. Quem quer salvar a sua vida perdê-la-á. A narrativa salvífica não é uma receita para a abolição do anthelkein na existência mas a confirmação da vida através da morte nesta guerra. A morte de Sócrates, que tal como a morte de Jesus, podia ter sido evitada fisicamente, é representativa porque autentifica a verdade da realidade.
Estas reflexões clarificaram o problema da verdade pelo que apenas falta uma afirmação explícita das intuições nelas implicados.
Nem se trata de uma questão que em vão procura uma resposta, nem há uma verdade da narrativa salvífica, impondo-se a partir de nenhures no facto da existência. O movimento na realidade interina é, na verdade, um todo inteligível de questão e de resposta, em que a experiência do movimento gera símbolos linguísticas para se exprimir. No que se refere às experiências, o movimento não tem outros "conteúdos" senão o seu questionamento, as paixões da atracção e da contra-atracção, os índices direccionais das atracções, e a consciência de si próprio a que chamamos a sua luminosidade. No que se refere aos símbolos, estes apenas têm de exprimir as experiências enumeradas, a situação da realidade experimentada no contexto mais amplo da realidade em que ocorre o movimento diferenciado, e o movimento auto-consciente, como um acontecimento da existência humana na sociedade e na história onde, até aqui, não ocorreu. As dificuldades de compreensão que estas intuições, frequentemente, suscitam no clima contemporâneo da desculturação são causadas pelos hábitos de hipostasiação e dogmatização. Quero, pois, sublinhar que os símbolos desenvolvidos no movimento não se referem a objectos na realidade externa, mas a fases do movimento à medida que se articula no seu processo auto-iluminante. Não existe outra realidade interina senão a metaxy experimentada na tensão existencial do homem para o fundo divino de ser; não há outra questão de vida e de morte senão a questão suscitada pelo puxão e pelo contra-puxão- não há outra narrativa salvífica senão a narrativa da divina atracção a ser seguida pelo homem; e não há articulação cognitiva da existência senão a consciência noética em que o movimento se torna luminoso para si próprio.
Outra dificuldade de compreensão resulta da intuição de que tanto os símbolos como as experiências simbolizadas pertencem à realidade interina. Não começa por haver, primeiro, um movimento na realidade interina e, em segundo lugar, um observador humano, quiçá um filósofo, que registe as suas observações do movimento. A realidade da existência, tal como é experimentada no movimento, é uma participação mútua (methexis, metalepsís) do humano e do divino; e os símbolos linguísticas que exprimem o movimento não são inventados por um observador que não participa no movimento; são gerados no próprio acontecimento da participação. O estatuto ontológico dos símbolos é tanto humano como divino. Platão sublinha que o seu mito dos fantoches é um alethes fogos, uma história verídica, quer o fogos seja "recebido de um deus, ou de um homem que sabe" (Leis 645b); e o mesmo estatuto duplo da "palavra" é reconhecido pelos profetas quando eles promulgam os seus ditos como "oráculo" de Yahweh, tal como na passagem de Jeremias acima citada. Este estatuto duplo dos símbolos que exprimem o movimento na metaxy foi muito obscurecido na história ocidental por teólogos cristãos que separavam as duas componentes da verdade simbólica, monopolizando a componente divina para os símbolos cristãos sob o título de "revelação", enquanto atribuíam o título de "razão natural" à componente humana de símbolos filosóficos. Esta doutrina teológica é insustentável empiricamente. Platão estava tão consciente da componente revelatória na verdade do seu fogos, como os profetas de Israel ou os autores dos escritos do Novo Testamento. As diferenças entre profecia, filosofia clássica e evangelho devem ser, antes, procuradas nos degraus de diferenciação da verdade existencial.
Finalmente, num clima de desculturação, existem as dificuldades de compreensão suscitadas pelos problemas da imaginação mítica. O mito não é uma forma simbólica primitiva, exclusiva das sociedades arcaicas e superado progressivamente pela ciência positiva; é, antes, a linguagem em que se articula as experiências da participação humano-divina na realidade interina. Ora a simbolizarão da existência participante evolui historicamente da forma mais compacta do mito cosmológico para as formas mais diferenciadas da filosofia, profecia, e evangelho; mas as intuições diferenciantes, longe de abolirem a metaxy da existência, acentuam um conhecimento mais articulado. Quando a existência se torna noéticamente luminosa como o campo da atracção e da contra-atracção, da questão da vida e da morte, e da tensão entre a realidade humana e divina, também se torna luminosa para a realidade divina como o além da metaxy que alcança a metaxy do acontecimento participatório do movimento. Não existe realidade interina da existência como objecto estanque mas apenas existência experimentada como parte de uma realidade que se estende para além da realidade interina. Esta experiência do Além (epekeína) da existência experimentada, esta consciência do Além da consciência que constitui a consciência ao alcançá-la, é a área da realidade que se articula através dos símbolos da imaginação mítica. O jogo imaginativo do alethes fogos é a "palavra" com que o divino Além da existência se apresenta na existência como a sua verdade. A narrativa salvífica pode ser diferenciada, além da filosofia clássica, historicamente ocorrida, através de Cristo e do evangelho, mas não há outra alternativa à simbolizarão da realidade interina da existência e do seu Além divino através da imaginação mítica. Os sistemas especulativos do tipo comtiano, hegeliano, e marxiano, alternativas hoje favorecidos, não são "ciência" mas deformações da vida da razão através da prática mágica da auto-divinização e da auto-salvação.
III
O Deus que brinca com o homem como um fantoche não é o Deus que se torna homem para salvar a vida, sofrendo a morte. O que gerou a narrativa salvífica da incarnação, morte e ressurreição divinas em resposta à questão da vida e da morte, é consideravelmente mais complexo do que a filosofia clássica; é mais rico devido ao fervor missionário do seu universalismo espiritual; é mais pobre pela sua negligência do controle noético; é mais amplo pelo seu apelo à humanidade inarticulada no homem comum, mais restrito devido à tendência contra a sabedoria articulada dos sábios; mais imponente através do seu tom imperial de autoridade divina; mais desequilibrado devido à sua ferocidade apocalíptica que conduz ao conflito com as condições da existência humana em sociedade; mais compacto devido à sua generosa absorção de extractos anteriores de imaginação mítica, especialmente devido à recepção da historiogénese Israelita e à exuberância dos milagres operados; mais diferenciado através da experiência intensamente articulada da acção amoroso-divina na iluminação da existência pela verdade. A compreensão destas diferenças complexas entre o movimento evangélico e o movimento da filosofia clássica, contudo, não fica mais esclarecido por se usarem dicotomias tópicas tais como filosofia e religião, metafísica e teologia, razão e revelação, razão natural e sobrenatural, nacionalismo e irracionalismo, etc. Procederei do seguinte modo: primeiro, estabelecerei o cerne noético partilhado pelos dois movimentos e depois explorarei alguns problemas que resultam da diferenciação da acção divina no movimento evangélico, bem como da recepção dos estratos mais compactos de experiência e simbolizarão.
A análise começará pelo ponto em que o evangelho concorda com a filosofia clássica ao simbolizar a existência como um campo de atracções e contra-atracções. Já antes citei Jo 12:32 onde o autor faz Cristo dizer que, quando se elevar da terra atrairá a si (helkein) todos os homens. Em Jo 6:44, este poder atractivo do Cristo é identificado com o puxão exercido por Deus: "Ninguém pode vir a mim a menos que o Pai, que me enviou, o puxe (helkeín)."[9] Mais austero neste ponto do que os evangelistas sinópticos, João torna perfeitamente claro que não existe outra "mensagem" de Cristo senão o acontecimento do Logos divino que se torna presente no mundo através da vida e morte representativa de um homem. As palavras finais da grande oração antes da Paixão exprimem a substância deste evento:
"Pai justo, o mundo não te conheceu, mas eu conheci-te, e eles sabem que tu me enviaste. A eles dei a conhecer o teu nome eles torná-lo-ão conhecido, a fim de que o amor pelo qual tu me amaste esteja neles e eu neles."[10] 17:25-26)
Seguir Cristo significa prosseguir o evento da presença divina na sociedade e na história: "Tal como tu me enviaste ao mundo, assim eu os envio ao mundo"[11] (17:18). E finalmente, uma vez que não há outra doutrina a ensinar senão a história a narrar da atracção divina que se torna efectiva no mundo através de Cristo, a narrativa salvífica que responde à questão da vida e da morte pode ser reduzida a uma afirmação breve:
"E é isto a vida eterna: Conhecer-te, o único verdadeiro Deus, e Jesus Cristo que tu enviaste."[12] 17:3)
Com uma extraordinária economia de meios, João simboliza a atracção do cordão de ouro, a sua ocorrência como um acontecimento histórico no homem representativo, a iluminação da existência através do movimento da questão da vida e da morte iniciada pela atracção à resposta salvífica, a criação de um campo social através da transmissão da intuição aos seguidores e, enfim, os deveres que incumbem a João de promulgar o acontecimento à humanidade em geral, através da escrita do evangelho como um documento literário: "Ora Jesus fez muitos outros sinais na presença dos discípulos que não estão registados neste livro. Os registados, contudo, foram escritos para que tu possas crer que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e que ao acreditá-lo possas viver em seu nome',[13] (20:30-31). Podemos imaginar como um jovem estudante de filosofia que quisesse trabalhar por si próprio, a partir dos vários impasses doutrinais em que os filósofos das escolas do seu tempo se tinham enredado, poderia ficar fascinado pelo brilho destas afirmações sucintas que lhe devem ter surgido como o aperfeiçoamento do movimento socrático-piatónico na interinidade da existência.
O símbolo helkeín é peculiar a João: não ocorre em mais nenhuma passagem do Novo Testamento. Nas epístolas de Paulo, de tal modo predomina a componente do conhecimento no movimento e a luminosidade da sua consciência que o pathos da atracção é simbolizado como um acto divino de conhecimento que agarra forçosamente o homem e ilumina a sua existência. Escreve Paulo em 2 Cor. 4-.6: "O Deus que disse 'deixai que a luz brilhe nas trevas' é o Deus que brilhou nos nossos corações para os tornar luminosos (ou resplandecentes, photismos) com o conhecimento (gnosís) da glória de Deus, a glória na face do Cristo.,,[14] A glória radiante na face do Cristo é o photísmos na face do homem que viu a Deus. Moisés ainda tinha de a esconder com um véu até que ela desaparecesse; este véu, que cobria de letras escritas o Antigo Testamento, foi retirado do Novo Testamento, escrito pelo espírito (pneuma) no coração; "e nós, com os nossos rostos descobertos, reflectindo o brilho do Senhor, todos crescemos mais e mais brilhantes à medida que nos voltamos para as imagens que reflectimos"[15] (2 Cor. 3:18).
Que a resplandecência do conhecimento no coração tenha a sua origem na acção divina é o que se afirma explicitamente em passagens como 1 Cor. 8:1-3:
"Nós sabemos que "todos nós possuímos conhecimento (gnosis)." O conhecimento (gnosís) incha, o amor (agape) edifica. Se alguém imaginar que sabe alguma coisa, ainda não sabe como devia saber. Mas se alguém amar a Deus, é conhecido por Ele."[16]
As palavras são endereçados a membros da comunidade Coríntia que possuem o conhecimento" como doutrina mas que o aplicam sem sabedoria como 'regra de conduta; a tais possuidores da verdade, lembra-se que só o conhecimento que Deus tem do homem poderá formar a existência sem a deformar. Escreve Paulo em aviso semelhante aos Gálatas: "Outrora, quando não conhecíeis a Deus, estáveis encadeados a seres que não eram realmente deuses; mas agora que conheceis Deus - ou antes, que sois conhecidos por Deus, porque quereis regressar a esses espíritos fracos e pobres, tornando-vos seus escravos?[17] (Gal. 4:8-9)
As ocasiões que levam Paulo a clarificar a dinâmica da gnosis na existência, diferem muito da situação em que os filósofos clássicos executavam a sua obra diferenciadora. Na segunda epístola aos Coríntios ele quer assinalar o brilho da aliança pneumática inscrita no coração contra a verdade mais compacta e "velada" da Lei de Moisés, usando para tal fim um simbolismo recebido dos profetas; em 1 Coríntios, tem de censurar os "idolótitos", homens que partilham de comida sacrificado a ídolos, e que sentem segurança no seu conhecimento, porque afinal os ídolos não são deuses; e em Gáiatas, tem de chamar à ordem os crentes que regressaram ao seu culto anterior de espíritos elementares. Esta diferença óbvia de contexto cultural, contudo, não deve obscurecer o facto que Paulo tenta articular a dinâmica do conhecimento existencial, comprimida por Aristóteles na fórmula que o pensamento humano (nous) em busca do fundamento divino do ser é movido (kineitai) pelo Nous divino que é o objecto do pensamento (noeton) do nous humano (Metafísíca 1072a 30ss.).
O cerne noético, portanto, é idêntico tanto na filosofia clássica como no movimento do evangelho. Existe o mesmo campo de atracção e contra-atracção, o mesmo significado de salvar a vida seguindo a atracção do cordão de ouro, a mesma consciência de existência numa realidade interina de participação humano-divina, e a mesma experiência da divina realidade como o centro da acção no movimento da questão para a resposta. Ademais, existe a mesma consciência de descobertas, novamente diferenciadas, sobre o significado da existência; e, em ambos os casos, esta consciência constitui um novo conjunto de tipos humanos históricos, descritos por Platão: primeiro, o homem espiritual (daimoníos aner) no qual o movimento ocorre; segundo, o homem do tipo anterior e mais compacto de existência, o mortal (thnetos) no sentido homérico; e terceiro, o homem que reage negativamente ao apelo do movimento, o homem ignorante ou insensato (amathes).
Apesar do cerne noético, a dinâmica espiritual do evangelho, modificou-se radicalmente através da experiência de uma irrupção divina extraordinária na existência de Jesus. Esta irrupção em que Jesus se torna o Cristo, é expressa pelo autor da Epístola aos Colossenses nas palavras: "Porque nele encarnou a plenitude da realidade divina (theotes)"[18] (2-.9). Na sua plenitude completa (pan to plerorha), a realidade divina só está presente em Cristo que, em virtude desta plenitude, "é imagem (eikon) do Deus invisível, o primogénito de toda a criação"[19] (1:15). Todos os outros homens não têm mais do que a parcela comum desta plenitude (pepleromenoi) ao aceitarem a verdade da sua presença completa no Cristo que, pela sua existência icónica, é "a cabeça de todo o poder (arche) e autoridade (exousía),[20] (2-10). Algo em Jesus deve ter impressionado os seus contemporâneos como uma existência tão intensa na metaxy que a sua presença corpórea, o somatikos da passagem, parecia já estar completamente permeada pela presença divina.
A passagem é preciosa, porque o autor conseguiu transmitir a sua impressão sem recurso a símbolos anteriores e mais compactos, tais como o "Filho de Deus", que não exprimiriam suficientemente a nova experiência diferenciada. Isto terá exigido um esforço consciente da sua parte, porque o termo theotes é um neologismo forjado para esta ocasião. Às várias traduções do termo como divinidade, divindade ou deidade que transmitem a implicação de um deus pessoal, prefiro realidade divina porque transmite melhor a intenção do autor em denotar uma realidade impessoal, que permite graus de participação na sua plenitude, embora permaneça o Deus para além da interinidade da existência. Se o autor pertencesse à "escola" Paulina, poderíamos compreender o seu símbolo theotes como uma tentativa para ultrapassar algumas imperfeições no símbolo de Paulo - the6tes. Em Rom. 1:18 ss., Paulo fala dos homens que suprimem a verdade de Deus devido à impiedade e injustiça: "Porque o que pode ser conhecido sobre Deus (to gnoston tou theou) é manifesto neles, porque Deus o tornou manifesto a eles. Porque sempre, desde que o cosmos foi criado, a realidade invisível de Deus podia ser compreendida pela mente (nooumana) nas coisas que estavam criadas, ou seja, o seu poder eterno (dynamis) e divindade (the@tes)."[21] Paulo é um homem bastante impaciente. Quer ver imediatamente diferenciada a realidade divina da experiência primária do cosmos como a divindade transcendente ao mundo que encarnou em Cristo; considera indesculpável que a humanidade tivesse que atravessar uma fase na história em que o Deus imortal fosse representado por imagens de "homens mortais, aves, quadrúpedes e répteis"; e só pode explicar este horror mediante a supressão deliberada de uma verdade bem conhecida. Ademais, devido ao seu menosprezo judaico para com ídolos pagãos, considera o fenómeno histórico do mito cosmológico como responsável por casos de vida dissoluta que observa à sua volta e entende que a continuação da adesão a esses mitos, com a consequente dissolução moral, é o castigo de Deus para os que anteriormente praticavam a idolatria (Rom. 1:26-32). Esta confusão zelosa de problemas tinha de ser desemaranhada; de facto, o autor de Colossenses extraiu da passagem Paulina a distinção entre os divinos "invisíveis" e os "visíveis" das experiências participativas; distinguiu entre o Deus invisível, experimentado como real para além da metaxy da existência, e o theotes, a realidade divina que penetra a metaxy no movimento da existência.
A distinção, é certo, fora já feita em Teeteto 176b, onde Platão descreve como propósito da fuga humana aos males do mundo, a aquisição da homoíosis theo kata dynaton, um tornar-se semelhante a Deus tanto quanto possível. Contudo, embora a homoiosís theo de Platão seja o equivalente exacto à penetração do theotes no autor de Colossenses, o homem espiritual de Platão, o daímonios aner, não é o Cristo dos Colossenses, o eíkon tou theou. Platão reserva a existência icónica para o próprio cosmos: o cosmos é a imagem (eikon) do Eterno; é o Deus visível (theos aísthetos) na imagem do Inteligível (eikon tou noetou); existe um único céu nascido (monogenes) cujo pai divino é tão recôndito que seria impossível manifestá-lo a todos os homens (Tímeu 28-29,92 c). Na contraposição entre o monogenes theos do Timeu de Platão a João 1: 1 8, torna-se visível o muro que o movimento da filosofia clássica não consegue quebrar, para alcançar as intuições peculiares do evangelho.
O obstáculo a uma nova diferenciação não é um defeito peculiar do movimento clássico, tal como uma limitação da razão natural sem a ajuda da revelação, tópico por vezes ainda explorado por teólogos que deveriam conhecer melhor o que se passa; o obstáculo é o modo cosmológico de experiência de e simbolizarão, dominante na cultura em que o movimento ocorre. A experiência do movimento tende a dissociar a realidade cósmico-divina da experiência primária, no ser contingente das coisas e no ser necessário do Deus transcendente ao mundo; e uma cultura em que a sacralidade da ordem, tanto pessoal como social, é simbolizada por deuses intra-cósmicos, não facilmente cederá o lugar ao movimento do theotes cuja vitória implica a dessacralização da ordem tradicional. Ademais, a rearticulação e re-simbolização da realidade em geral de acordo com a verdade do movimento, é uma tarefa espantosa que exige séculos de esforço sustentado. É possível discernir um forte movimento existencial que impele à compreensão da divindade escondida, o agnostos theos, dos deuses intracósmicos, por exemplo, nos Hinos Egípcios a Amon no século XIII a.C., aproximadamente na mesma época em que Moisés quebrou com a mediação faraónica da ordem divina na sociedade, mediante o esforço de constituir um povo na presença imediata de Deus; e, contudo, foram precisos treze séculos de história, e os acontecimentos abafadores de sucessivas conquistas imperiais, para tornar o povo receptivo à verdade do evangelho. Depois, o movimento poderia abortar social e historicamente, se o movimento clássico, continuado pelos pensadores helenísticos não fornecesse o instrumento noético para a resimbolização da realidade, para além da área restrita do próprio movimento conforme à verdade do evangelho; e mesmo quando, o evangelho se tornou socialmente eficaz, favorecido por esta constelação cultural, foram precisos outros doze séculos para que o problema do ser contingente e do ser necessário fosse articulado pelos pensadores escolásticos. Se a "revelação" deve ser levada a sério; se tal símbolo pretende exprimir a dinâmica da presença divina no movimento, o mistério do seu processo na história assumirá proporções mais formidáveis do que teve em Paulo que lutava, em Romanos 9-1 1, com o mistério da resistência de Israel ao evangelho.
A dinâmica do processo ainda está imperfeitamente compreendida devido às espectaculares roturas históricas que deixam, na sua esteira, uma sedimentação de símbolos do Antes-e-Depoís que distorcem gravemente a realidade, quando utilizados na interpretação da história cultural: antes da filosofia, houve o mito; antes do Cristianismo, os ídolos pagãos e a Lei Judaica; antes do monoteísmo, houve o politeísmo e antes da ciência moderna, claro, houve superstições primitivas tais como filosofia e evangelho, metafísica e teologia, que, hoje em dia, nenhuma pessoa que se respeite deveria repetir. Nem todos são tão tolerantes e inteligentes como o Jesus que afirmou: "Não penseis que eu vim para dissolver a lei e os profetas; eu não vim para dissolver (katalysal) mas para cumprir (plerosai)"[22] (Mat. 5:17). Esta sedimentação de fenótipos ignora que, em termos de registos históricos, a verdade da realidade está sempre totalmente presente na experiência humana e o que muda são os graus de diferenciação. As culturas cosmológicas não são um domínio de idolatria primitiva, politeísmo ou paganismo, mas campos muito sofisticados de imaginação mitica, capazes de encontrar os símbolos próprios para os casos típicos ou concretos da presença divina num cosmos em que a realidade divina é omnipresente. Ademais, os casos simbolizados não são experimentados como raridades sem relação entre si, formando cada um uma espécie de realidade por si só, mas são decididamente experimentados como "os deuses", ou seja: manifestações da realidade única que constitui e envolve o cosmos. Esta consciência da unicidade divina por detrás da multidão dos deuses, exprime-se em construções mito-especulativas de teogonias e cosmogonias que simbolizam compactamente tanto a unidade da divindade como a unidade do mundo que ele criou. Podemos dizer que os deuses da cultura cosmológica têm uma forma de presença divina universal específica e um fundo da mesma presença universaldivina; são divindades específicas que partilham da realidade divina universal.
Irei agora situar o movimento do evangelho no contexto do processo revelatório em que o Deus Desconhecido se separa das divindades cosmológicas.
Nos já mencionados Hinos a Amon da XIX Dinastia, Amon "surgiu no princípio, de modo que a sua natureza misteriosa é desconhecida.". Nem sequer os outros deuses lhe conhecem a forma de "deus maravilhoso e multiforme." "Todos os outros deuses o celebram para se enaltecerem a si próprios através da sua beleza, porque ele é divino. O próprio Ré está unido com o seu corpo. " É demasiado misterioso para que a sua majestade se possa manifestar, é demasiado grande para que o homem se possa interrogar sobre ele, demasiado poderoso para que possa ser conhecido".[23] Por trás dos deuses conhecidos emerge, assim, o deus desconhecido de que eles derivam a respectiva realidade divina. Este Amon desconhecido, contudo, embora em vias de se diferenciar do Amon específico de Tebas, não é um deus a mais no panteão cosmológico, mas o theotes do movimento que, no processo posterior de revelação, pode ser diferenciado até à revelação culminante em Cristo. Ademais, uma vez que o deus desconhecido não é o novo deus mas a realidade divina experimentada como já presente nos deuses conhecidos, o processo revelatório necessariamente se tornará uma fonte de conflitos culturais, à medida que progride a diferenciação da sua verdade. "Guerra e batalha," são as palavras de abertura do Górgias, provocados pelo aparecimento de Sócrates; e Jesus diz: "Eu vim para incendiar a terra... Pensais que eu vim para trazer a paz à terra? Não, digo-vos, mas antes a espada"[24] (Lucas 12:49,51). Os homens empenhados no movimento tendem a elevar a realidade divina experimentado ao nível de um deus à imagem dos deuses conhecidos e a opôr este deus verdadeiro aos deuses específicos, demovidos do estatuto de falsos deuses; por outro lado, os crentes cosmológicos, certos da verdadeira divindade dos respectivos deuses, acusarão de ateísmo os portadores do movimento ou, pelo menos, de subvenção da ordem sacral da sociedade através da introdução de novos deuses. É este conflito que fundamentalmente opõe Celso, no seu ataque ao Cristianismo, e Orígenes no seu Contra Celsum.
Os Hinos de Amon são o documento representativo do movimento na fase em que o esplendor dos deuses cosmológi'cos já se tornou derivado, muito embora os próprios deuses não se tenham, ainda, tornado falsos. Setecentos anos mais tarde, no equivalente do Deutero-lsaías aos Hinos de Amon (Is. 40-1225), os deuses tornaram-se ídolos feitos pelo homem que já não partilham da realidade divina; entretanto, o deus desconhecido adquiriu o monopólio da divindade. O autor luta nitidamente com a dinâmica da nova situação. Por um lado, o seu deus está sozinho consigo próprio e com o seu ruach desde o princípio (40-.12-14), tal como Amon é desconhecido; por outro lado, é um deus conhecido que admoesta os homens por o não conhecerem como deviam, muito à maneira de Paulo, admoestando os pagãos por não conhecerem Deus, já revelado na sua criação:
"Não conhecestes? Não ouvistes?
Não vos disseram desde o princípio? Não compreendestes desde a criação da terra?[25] (40:21)
Tanto os autores dos Hinos a Amon como o Deutero-isaías reconhecem o "No-Princípio" como o verdadeiro critério da realidade divina; neste ponto não existe, de facto, diferença entre os documentos aqui debatidos e o prote arche de Aristóteles, na especulação sobre a cadeia etiológica na Metafísica; mas se nos Hinos de Amon a tónica recai sobre a causa sui no Princípio divino, no Deutero-isaías recai sobre a causa rerum, embora nenhum dos casos negligencie o outro componente do Princípio. A causa sui é o que torna em agnostos theos a realidade divina diferenciada do movimento; a causa rerum é o que a torna em deus conhecido através da criação. Quando a realidade divina emerge do movimento, na profecia do Deutero-lsaías, o Yahweh de Israel regressa como o Deus de toda a humanidade:
"Que criou os céus e que os alargou, Que estendeu a terra e o que dela vem, Que dá o espírito ao povo (am),e espírito àqueles que se movem."[26] (42:5)
E o profeta, confundindo-se com o próprio Israel, tornou-se o Servo Sofredor, enviado por Deus:
"Como aliança para o povo (am), uma luz para as nações, para abrir os olhos que estão cegos, para trazer os prisioneiros da caverna, da prisão em que estão sentados na escuridão.[27] (42:6-7)
O tesoureiro da rainha da Etiópia viajara até Jerusalém para prestar culto. No episódio de Actos 8:26-40 encontramo-lo no caminho de regresso, na estrada de Gaza, sentado na sua carruagem, reflectindo no passo do Deutero-isaías: " Tal como um cordeiro ele foi levado ao sacrifício...”[28] Um anjo do Senhor enviou o apóstolo Filipe para o encontrar: "Compreendes o que estás a ler?',[29] ,COMO posso" replicou o etíope, "sem alguém que me guie?... Acerca de quem, por favor diz-me, fala o profeta: acerca dele ou de outra pessoa?',[30] Então, Filipe começa por falar da história dos apóstolos e a partir desta passagem explica-lhe a Boa Nova (evangelisato) de Jesus. A revelação do Deus Desconhecido, através de Cristo, em continuidade consciente com o processo milenar de revelação que esbocei, é de tal modo o centro do movimento do evangelho que pode ser chamado o próprio evangelho. O Deus de João 1:1 ss. que no princípio está a sós com o seu Logos, é o Deus do Deutero-isaías (40:13), que no princípio está a sós com o seu ruach; o Verbo que brilha omo uma luz nas trevas (João 1:5, 9:5) é o Servo Sofredor que é dado como uma luz às nações, para extrair da prisão aqueles que se sentam na escuridão (isaías 42-.6-7); e em 1 João 1, a luz que estava com o Pai, manifestando-se a si através do Cristo seu Filho, constitui a comunidade daqueles que querem andar na luz. O próprio Deus Desconhecido, então, é tematizado em Actos 17:16-34, no discurso do Areópago atribuído por Lucas a Paulo. Ao louvar os Atenienses por terem dedicado um altar ao Agnostos Theos, o Paulo dos discursos assegura-lhes que o deus que eles cultuam, sem saber quem é, é o próprio deus que ele lhes veio proclamar (Katangello). Em termos do Deutero-lsaías, descreve-o como o deus que criou o mundo e tudo o que nele está e, portanto, em nada igual aos deuses dos altares feitos à mão; (Isaías 40:12,18-20) é, sobretudo, Deus da humanidade a quem deu vida e espírito (isaías 42:5). Está suficientemente perto de nós para ser encontrado, porquê "nele vivemos e nos movemos e temos o nosso ser." Perdoará a ignorância com que o representámos, no passado, com ídolos feitos pelo homem mas, agora, ordena (apangellei) a todos que se arrependam (metanoein); todos são chamados a conhecê-lo como o verdadeiro deus que julgará os homens através do homem que ele ressuscitou dos mortos. Mais poderia ser acrescentado, tal como Nunc dimittis de Lucas 2:29-32, mas a passagem citada é suficiente para estabelecer o Deus Desconhecido como o deus que é revelado através de Cristo.
IV
No drama histórico da revelação, o Deus Desconhecido acabou por se tornar o Deus Conhecido através da sua presença em Cristo. Este drama, embora estivesse vivo na consciência dos autores do Novo Testamento, está muito longe de estar vivo na Cristandade das igrejas contemporâneas porque a história da Cristandade é caracterizada pelo que habitualmente se chama a separação entre teologia escolar e teologia mística, ou experiencial, que formava uma unidade ainda aparentemente inseparável na obra de Orígenes. O Deus Desconhecido, cujo theotes estava presente na existência de Jesus, foi eclipsado pelo Deus revelado da doutrina Cristã. Mesmo hoje, contudo, quando se reconhece que esta separação infeliz é uma das grandes causas da crise espiritual moderna; quando se fazem tentativas enérgicas para lidar com o problema através de várias teologias existenciais e críticas; e quando não falta informação histórica quer acerca do processo revelatório que conduz à epifania de Cristo, quer acerca da perda da realidade experiencial através da endoutrinação; a análise filosófica destes vários aspectos continua a estar muito aquém da nossa consciência préanalítica. Torna-se necessário, portanto, reflectir no perigo que deu mau nome ao Deus Desconhecido no Cristianismo e que induziu determinados desenvolvimentos doutrinários como medida protectora contia o perigo de o movimento do evangelho descarrilar para gnosticismo.
No seu livro Agnostos Theos (1913- rpr. 1956, pp. 73ss.) Eduard Norden colocou o problema no seu contexto histórico e refere-se, nessa ocasião, à sua primeira apresentação por Ireneu no Adversus Haereses (ca. 180). Ireneu faz assentar o conflito doutrinal entre gnosticismo e Cristandade ortodoxa na interpretação de uma passagem de Mat. 11, 25-27:
"Nesse tempo, Jesus disse: Reconheço humildemente, Pai, Senhor do céu e da terra, que escondeste estas coisas dos sábios e entendidos e as revelaste aos simples; foi assim Pai, porque assim pareceu bom à tua vista. E estas coisas são-me entregues a mim pelo meu Pai, e ninguém conhece o Filho excepto o Pai, e ninguém conhece o Pai excepto o Filho e aqueles a quem o Filho escolher para o revelar."[31]
,Na doutrina de ortodoxia, o Deus revelado por Jesus é o mesmo deus que o deus criador revelado pelos profetas de Israel; na doutrina gnóstica, o Deus Desconhecido de Jesus e o demiurgo israelita são dois deuses diferentes. Contra os Gnósticos, lreneu propõe-se provar, com a sua obra, que o deus que eles distinguem como o Bythos, o Profundo, é na verdade " a grandeza invisível desconhecida de todos" e, ao mesmo tempo, o criador do mundo descrito pelos profetas (1.19.12). Eles tornam o logíon absurdo quando interpretam as palavras "ninguém conhece o Pai senão o Filho" como referente a um Deus absolutamente Desconhecido (íncognítus deus), porque "como poderia ser desconhecido se eles próprios sabem algo acerca dele?" Estaria o logíon, realmente, a dar o conselho absurdo: "Não procureis a Deus; ele é desconhecido e não o encontrareis"? Cristo não veio para deixar a humanidade saber que o Pai e o Filho são incognoscíveis, senão a sua vinda terra sido supérflua (IV.6).
Nem a apresentação do debate por lreneu, nem o seu argumento em prol da ortodoxia são uma obra prima de análise. Se o Pai e o Filho, no logíon em causa, forem conceptualizados como duas pessoas que se conhecem a si com exclusão dos demais, então a afirmação não seria mais do que uma peça informativa em que podemos ou não acreditar. Nada se extrairia dela, nem para a ortodoxia nem para o gnosticismo. Ademais, se Jesus pode introduzir esta informação conceptualizada sobre si próprio, qualquer um o pode também fazer; e poderíamos esperar que os filhos do Pai se tornassem muito numerosos. De facto, foi algo deste gênero que parece ter acontecido, porque lreneu enumera como Gnósticos "Marcião, Valentino, Basílides, Carpócrates, Simão e os outros", sugerindo que eles se reclamavam do referido estatuto, e acrescenta: " mas nenhum deles foi o Filho de Deus, mas apenas Jesus Cristo, nosso Senhor" (IV.6.4). A situação assemelha-se à moderna i'rrupçao de novos Crístos nas pessoas de Fichte, Hegei, Fourier e Comte. Pelo menos, uma causa importante de confusão, é a deformação proposicional e conceptual de símbolos que apenas têm sentido à luz da experiência que os engendrou. Por isso, começarei por situar o logíon no contexto experiencial de Mateus, lembrando, para este propósito, apenas as passagens mais importantes; depois, analisarei a estrutura do problema que pode conduzir aos vários descarrilamentos doutrinários.
Numa época em que a realidade do evangelho ameaça dividir-se entre construções de um Jesus histórico e de um Cristo doutrinar, não é demais enfatizar o estatuto dos evangelhos como simbolismos gerados na metaxy da existência pela resposta de um discípulo ao drama do Filho de Deus. O drama do Deus Desconhecido, que revela o seu Reino através da sua presença num homem, e do homem que revela o que lhe foi entregue, entregando-o aos seus companheiros, é prosseguido pelo discípulo, existencialmente responsável, no drama do evangelho, onde desenvolve o trabalho de transmitir estas coisas, de Deus para o homem. O próprio evangelho é um acontecimento no drama da revelação. O drama histórico na metaxy, portanto, é uma unidade através da presença comum do Deus Desconhecido nos homens que respondem ao seu glapelo" e uns aos outros. Através de Deus e dos homens como dramatís personae, a presença do drama partilha tanto do tempo humano como da intemporalidade divina; mas rasgar o drama da participação na biografia de um Jesus num mundo espácio-temporal e em verdades eternas lançadas do além, é tornar absurda a realidade existencial que foi experimentada e simbolizada como o drama do Filho de Deus.
O episódio do caminho para Cesareia de Filipo (Mat. 16,13-20) pode ser considerado uma chave de compreensão para o contexto existencial em que se deve colocar a passagem 11,27. Aí, Jesus pergunta aos discípulos quem dizem os homens que é o Filho do homem e recebe a resposta que é diversamente entendido como um apocaliptico do tipo de João Baptista, como o profeta Elias, um Jeremias ou outro dos profetas. O questionamento de Jesus move-se para quem os discípulos pensam que ele é, recebendo então a resposta de Simão Pedro: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo" (16,16)[32]. Jesus responde: "Abençoado és tu, Simão Bar-Jonas, porque não foram a carne e o sangue que te revelaram isso, mas o meu Pai que está no Céu. [33] O Jesus Mateano concorda, portanto, com o Jesus Joanino (Jo. 6,44) em que ninguém poderá reconhecer o movimento da presença divina no Filho, a menos que esteja preparado para esse reconhecimento através da presença do Pai divino nele próprio. A filiação divina não é revelada através de uma informação prestada por Jesus, mas através da resposta de um homem à presença completa em Jesus do mesmo Deus Desconhecido por cuja presença ele é incoativamente movido na sua própria existência. O Deus Desconhecido penetra o drama do reconhecimento de Pedro como a terceira pessoa. Em ordem a traçar a distinção entre revelação e informação, bem como para evitar o descarrilamento de uma para outra, o episódio termina com a ordem de Jesus aos discípulos "não digais a ninguém que eu sou o Cristo" (Mat. 16,20).[34]
O motivo do silêncio que guardará a verdade da revelação contra a sua degradação como uma peça de conhecimento disponível para o público em geral, é repetido com particular cuidado por Mateus na história da Paixão. No julgamento perante o Sinédrio, Jesus nada responde às acusações periféricas (26,13); à acusação central de se ter proclamado o Filho de Deus, replica: "Assim o disseste", não se comprometendo nem negativa nem afirmativamente; mas, depois, falando de Judeu para Judeus, recorda-os do Filho do homem apocalíptico que virá nas nuvens do céu. Já no julgamento perante Pilatos, a ameaça apocalíptica seria insensata; quando os representantes do Sinédrio repetem as suas acusações, Jesus permanece completamente silencioso, "de tal modo que o governador muito se espantou" (27,11-14)[35] . Na cena de troça perante o crucificado, a resistência viciosa parece vencer: "Se tu és o Filho de Deus, desce dessa cruz" (27,40)[36] . Mas, por fim, quando Jesus se afunda no silêncio da morte enquanto o cosmos se rompe em prodígios, a resposta emerge dos guardas romanos: "Este realmente era o Filho de Deus!" (27,54).[37]
'Na época da Paixão, segundo parece, o grande segredo de Cesareia de Filipo, o chamado Messiasgeheímnis, tornara-se, afinal, um assunto do conhecimento público. Para explicar esta peculiariedade, contudo, não devemos acusar os discípulos de desdém loquaz perante a ordem de silêncio; entre este episódio e a Paixão, Mateus permite que Jesus seja muito generoso em alusões pouco mais que veladas ao seu estatuto como o Messias e o Filho de Deus. A acusação do Sinédrio de que Jesus se proclamara a si mesmo o Filho de Deus estava bem fundada. Ademais, mesmo perante o reconhecimento enfático por Pedro, na ocasião em que Jesus caminha sobre as águas, o evangelista permite que os discípulos como grupo o reconheçam: "Tu realmente és o Filho de Deus!" (14,33).[38] Mais atrás no evangelho, o símbolo aparece no logíon 11,25-27 como uma auto-declaração de Jesus seguida por um apelo:
"Vinde a mim todos os que trabalhais e que estais carregados e eu dar- vos-ei repouso. Tomai o meu jugo sobre vós e aprendei comigo porque eu sou suave e humilde de coração e encontrareis repouso para a vossa alma Pois o meu jugo é brando e o meu fardo é leve...[39] (11,28-30)
Toda a perícope de 11,25-30 é aparentemente endereçada, não aos discípulos, mas às multidões mencionadas em 11,7. E, um pouco mais atrás (8,29), os demoníacos de Gadara reconhecem Jesus como o Filho de Deus, conforme o ouvem os circunstantes. Assim, o segredo era conhecido de todos, incluindo aqueles que resistiam, um ponto a reter se quisermos compreender a conversão de Paulo. E contudo, Mateus não está a fazer confusões na construção do seu Evangelho tal como os discípulos não estão a ser loquazes. Um evangelho não é uma obra de arte feita por um poeta, nem uma biografia de Jesus feita por um historiador, mas a simbolizarão de um movimento divino que passa da pessoa de Jesus para a sociedade e a história. O movimento revelatório, por conseguinte, prossegue em mais de um plano. Primeiro, vem o drama pessoal de Jesus desde a constituição da sua consciência como o Filho de Deus nos encontros com Deus (3,16-17) e com o demónio (4, 1-1 1), até à realização completa do que significa ser o Filho de Deus (16,21-23), à submissão à Paixão e à última palavra:" Meu Deus, meu Deus porque me abandonaste?" (27,46)[40] . Existe, depois, o drama social dos seus compatriotas que nele reconhecem a autoridade divina, a exousia, através das suas palavras e milagres, distinguindo-se a resposta positiva do povo simples da resistência dos sábios e autoridades públicas. E finalmente, o drama social torna-se histórico ', porque sem a preparatio evangélica do movimento milenar que criou a disponibilidade da resposta experiencial e da imaginação mítica para com o Filho de Deus não seria possível o reconhecimento da filiação divina, no tempo de Jesus, nem a compreensão póstuma de que o Deus Desconhecido sofrera a morte num homem para o trazer à vida. O mistério da presença divina na existência cresceu na consciência do movimento, muito antes de começar o drama do Evangelho e os símbolos que o evangelista usa para o exprimir -Filho de Deus, Messias, Filho do homem, Reino de Deus- estavam historicamente disponíveis através dos simbolismos do Farão egípcio, da realeza de David, dos profetas e dos apocalipses, através de tradições iranianas e de mistérios helenísticos. Donde que, o "segredo" do Evangelho não é nem o mistério da presença divina na existência, nem a sua articulação através de novos símbolos, mas o acontecimento da sua compreensão completa e do seu cumprimento através da vida e morte de Jesus. As contradições aparentes dissolvem-se no uso dos mesmos símbolos em vários níveis de compreensão , bem como em vários níveis de cumprimento, até que o Cristo é revelado não numa doutrina plena, mas na plenitude da Paixão e da ressurreição.
O que aqui significa 'plenitude', em contraposição com graus menores de compreensão, pode ser esclarecido pelo processo de diferenciação progressiva em capítulos como 11; 16.
No Capítulo 11, João Baptista envia os seus discípulos a inquirir de Jesus se ele é o malak, o mensageiro de Deus, profetizado em Mal. 3,1, que precederá a vinda de Yahweh ao seu templo. Evitando uma resposta directa, Jesus pede aos discípulos que relatem ao seu mestre os milagres e as curas de Jesus, sabendo muito bem que tais factos não são o que se espera do malak de Malaquias; deixa-os livres para extrair as suas próprias conclusões e despede-os com o aviso a João e aos seus seguidores que bem-aventurado é apenas quem não se ofende com Jesus (11,2-6). Depois, vira-se para as "multidões" e explicalhes quem é João-. João é um profeta, mas ao mesmo tempo é mais do que um profeta- de facto, João, mais do que Jesus, é o verdadeiro malak de Malaquias. Na citação de Malaquias, contudo, o Jesus de Mateus muda o texto sobre o mensageiro que " Eu [o Senhor] envio ... para preparar o caminho para Mim”,[41] para o mensageiro que o Senhor enviou para preparar o caminho para "vós". Com esta mudança pronominal de "eu" para "vós", o Baptista é convertido de precursor do Yahweh de Israel em precursor do Deus Desconhecido que está presente no seu Filho Jesus (11,7-10). Com João termina o profetismo da lei e dos profetas enquanto tipo da existência na realidade interina (11,13); o que está em processo de advento e já presente em Jesus e nas pessoas simples que o seguem, é o Reino do Pai Desconhecido do Sermão da Montanha e do Pai-Nosso. O capítulo, portanto, encerra consistentemente com a auto-declaração do logíon 11,25-30.
No capítulo 16, o Jesus de Mateus resume a diferença entre o seu próprio estatuto e o dos seus antecessores. No já citado 16,13-14, as classificações populares de Jesus como um João Baptista, um Elias, um Jeremias, são postas de parte pela resposta de Pedro: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo". O significado da resposta deve ser visto através da combinatória dos símbolos: Messias, Cristo e Filho de Deus. Até essa passagem, o símbolo Cristo fôra apenas usado por Mateus no seu papel de narrador, mas não por nenhum dos personagens do drama. Agora o rei-salvador profético e apocalíptico de Israel é identificado ao Filho de Deus no próprio processo de Revelação. Como o malak de Malaquias tinha de modificar a sua compleição para se tornar o precursor de Jesus, assim agora o Messias tem de adquirir as características do Filho de Deus que anteriormente não tinha; ou, pelo menos, essa era a intenção do Jesus de Mateus quando ele aceitou o reconhecimento de Pedro. Historicamente, contudo, os dois símbolos interinfluenciaram-se: a absorção do Messias trouxe para a história do Cristianismo, tal como para a da civilização ocidental cristianizada, o estrato apocaiíptico de fantasia violenta que pode degenerar em acção violenta no mundo. Mesmo no próprio Novo Testamento, em Apo. 19,11-16, vemos a vinda do Messias:
"E agora, eu vi o céu aberto e um cavalo branco aparecer. O seu cavaleiro chama-se Fiel e Verdadeiro; e com justiça ele julga e faz a guerra. Os seus olhos são flamejantes; na sua cabeça estão muitos diademas; ele tem um nome inscrito que ninguém conhece, a não ser ele. Usa um manto empapado em sangue; e é conhecido pelo nome: o verbo de Deus (ho logos tou théou). Por detrás dele, revestidos de linho branco, cavalgam os exércitos celestes em cavalos brancos. Da sua boca sai uma espada aguçada para castigar as nações; irá governá-las com um ceptro de ferro e traz consigo o vinho da ferocidade e da ira de Deus, o Todo Poderoso. No seu manto e na sua coxa está escrito o nome: Rei dos reis e Senhor dos senhores."[42]
Este Verbo de Deus, a escorrer sangue, está muito longe do Jesus de Mateus que chama a si os pobres em espírito, os mansos, os puros no coração, os pacíficos, aqueles que têm fome e sede de justiça e que são perseguidos em nome da justiça. Em Mat. 16, Jesus sente que não pretende transformar o Filho de Deus no marechal de campo do Criador de todas as coisas; antes quer transformar o Messias no Filho de Deus. Fossem quais fossem os simbolismos atribuídos ao Ungido em Israel, eles são agora relegados para o passado através da presença do Deus Desconhecido no Filho. A consciência da filiação tem agora de se desdobrar. Donde que, "a partir desse tempo, Jesus começou a mostrar aos seus discípulos que deveria ir a Jerusalém e sofrer muito às mãos dos anciãos, dos escribas e fariseus e ser morto e ao terceiro dia ressuscitar".[43] O pathos da morte representativa a ser sofrida penetrou na consciência de Jesus. Quando Pedro o quis dissuadir desse caminho, Jesus censurou-o, zangado: "Afasta-te, Satanás! Tu és um estorvo (skándalon) para mim; porque o que tu pensas não é próprio de Deus mas dos homens" (16,21-23).[44] Não é por acaso que Jesus censura Pedro com o mesmo hypage satana que usará na rejeição do tentador em 4, 10; a fórmula pretende, de facto, caracterizar o modo de pensar do "homem" como o modo de ser diabólico. Mas este "homem" que pode ser simbolizado como o diabo é o homem que contraiu a sua existência à de um eu imanente ao mundo e que se recusa a viver na abertura da metaxy. O Jesus de Mateus deixa que a censura a Pedro, ministrada na linguagem mais antiga de Deus e Satanás, seja seguida pela tradução do seu significado na simbolizarão noética da existência, já aqui discutida, através do duplo significado da vida e da morte-.
"Se um homem quiser vir comigo, renegue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Porque quem quer salvar a sua vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida por mim, salva-la-á. Porque o que aproveita ao homem se ele ganhar todo o mundo mas perder a sua alma. [45] (16,24-26)
A afirmação conclui com a questão pungente: o que tem um "homem", ou seja, a sua vida como um eu contraído imanente, a oferecer em troca da sua "vida" (psyché) no segundo sentido?[46] O significado da censura, bem como a relação entre ambos os estratos simbólicos, é ademais iluminado pelo uso do verbo aparneístaí (renegar, repudiar, desaprovar) na negação do eu de 16,24. O mesmo verbo é usado para identificar a negação humana de Jesus na afirmação: "A quem me renegar a mim perante os homens, também o renegarei perante o meu Pai que está nos céus" (10,33)[47] . Ademais, é especificamente utilizado a propósito da negação de Pedro em 26,33-34.69-75, criando assim o grande contraponto entre as três negações de Jesus por Pedro e as três rejeições do diabo por Jesus. Na interinidade da existência, o homem enfrenta a escolha entre negar o seu eu e o diabo ou, então, Jesus e o Deus Desconhecido.
Embora longe de exaustiva, a análise do contexto experiencial em que se situa a passagem 11,27, foi levada suficientemente longe para evidenciar os problemas noéticos da realidade que se prestam a más interpretações, devido a hipóstases doutrinais, ênfase excessiva numa área da realidade em detrimento de outras, ou mera falta de interesse em aprofundar a penetração noética. No contexto presente, limito-me a uma breve enumeração das questões principais:
1. Os diversos problemas que nos foram transmitidos ao longo de dois mil anos, têm o seu centro num Movimento em que a consciência humana de existência emerge da experiência primária do cosmos. A consciência torna-se luminosa para si mesma como o local do processo revelatório, do buscar e do ser atraído. A experiência de um cosmos cheio de deuses, tem de ceder à experiência da presença divina eminente no movimento da alma na metaxy. Por conseguinte, toda a simbolizarão da verdade sobre a realidade, sobre Deus, homem, sociedade e mundo tem de, a partir de agora, ser filtrada e compatibilizada com a verdade eminente da consciência existencial. Ademais, uma vez que o lugar da verdade é historicamente preenchido pelas simbolizações mais compactas da experiência primária, a consciência existencial é a consciência histórica no sentido em que, por ocasião da sua diferenciação, a verdade da realidade é descoberta como um acontecimento no processo de uma realidade cuja verdade avança para as fases superiores de realização. Para a história ser compatível com a verdade da existência, tem de ser simbolizada como um processo revelatório: o passado cosmológico de experiência e simbolizarão deve ser relacionado de modo inteligível com a consciência diferenciada a que deu origem; e a visão do futuro deve ter alguma relação inteligível com a intuição acerca do duplo significado da vida e da morte. As respostas a este problema têm um amplo leque de variações. Pode avaliar-se a sua amplitude ao confrontarmos a concepção agustiniana da história e a sua espera paciente de eventos escatológicos com a especulação hegeliana que realiza o evento escatológico através da construção do sistema,- ou se confrontarmos a posição de um teólogo existencialista contemporâneo que rejeita o Antigo Testamento como irrelevante para a teologia cristã, com a posição de Clemente de Alexandria que insiste em adicionar a filosofia grega como o segundo Antigo Testamento para cristãos. No que se refere a visões do futuro, podemos confrontar o milénio introduzido por um anjo do Senhor em Apocalipse 20, com os milénios introduzidos por Cromwell e o exército puritano, ou por Lenine e o partido comunista.
2. O cosmos não deixa de ser real quando a consciência da existência na realidade interina se diferencia; mas há enormes resistências emocionais e dificuldades técnicas em re-simbolizar, à luz da nova intuição, a ordem do cosmos que, ao nível compacto, fôra adequadamente simbolizada pelos deuses intracósmicos; sucede isto porque a nova consciência histórica exige que os antigos deuses sejam re-simbolizados como símbolos de fases anteriores no processo de revelação. No movimento da filosofia clássica, como já mostrei, a análise noética da metaxy foi tão longe quanto no movimento do evangelho e, nalguns pontos, é superior a tudo o que pudermos encontrar no evangelho; contudo jamais deu o passo decisivo de converter a experiência da tensão humana para o Deus Desconhecido na verdade a que se deve conformar toda a verdade do real. Para Platão, o monogenes do Deus Desconhecido não é um homem mas o cosmos. No mito do Fedro por conseguinte, Platão trata explicitamente da relação entre o Deus Desconhecido e os deuses intra-cósmicos: por ocasião dos festivais, os Olímpicos ascendem ao topo do seu céu; "onde o trabalho e a luta supremos (éschatos) aguardam a alma" que pretende passar para além e alcançar a superfície exterior da cúpula; mas quando eles tomam esta atitude podem contemplar as coisas exteriores ao céu. Os seguidores humanos dos deuses têm êxito parcial, mas nunca completo, em alcançar este estado de contemplação, de tal modo que nenhum poeta deste mundo jamais louvou, ou louvará, condignamente o hyperouránion, a região para além do céu (247). 'Assim, a imaginação mítica de Platão atribui aos deuses intra-cósmicos uma tensão na psyché para com o Deus Desconhecido e deixa que eles transmitam o seu verdadeiro conhecimento ao homem. Na linguagem do mito cosmológico, estes mediadores e buscadores Olímpicos de Deus são o equivalente ao Filho de Deus, o único que conhece o Pai Divino no pleróma da presença e que transmite o seu conhecimento aos seguidores, de acordo com a respectiva receptividade humana. Esta resolução platónica do problema teve um êxito duradouro na filosofia: seiscentos anos depois, quando Plotino diferenciou de novo o Deus Desconhecido como a Mónada epekeina nou (Enéades V.111.2), voltou ao mito do Fedro para simbolizar a relação entre os deuses intracósmicos e o Deus Desconhecido (Enéades V.VIII.10). Ademais, utilizou o argumento dos deuses que contemplam o "rei do reino do além" na sua polémica contra os "filhos de deus" gnósticos que se pretendem elevar acima dos deuses do cosmos e falar deste mundo como " a terra alheia" (11.ix.9).
3. A área de consciência existencial, embora de grau eminente, é apenas uma área da realidade. Se se lhe der ênfase excessiva, o cosmos e os seus deuses tornar-se-ão a "terra alheia" dos gnósticos e dificilmente valerá a pena viver a vida do mundo desprezado . A tendência para este desequilíbrio já está presente no movimento evangélico. Mas quando Jesus prefere os simples aos sábios e às autoridades públicas, não pretende iniciar uma revolução que levará os simples ao poder; apenas considera que o Reino de Deus é mais facilmente acessível aos "pobres" do que a homens com interesses consolidados e posições de responsabilidade nos assuntos mundanos. O apelo de Jesus é muito diferente do apelo que Platão dirigia aos filhos da classe dominante, pedindo-lhes que se tornassem existencialmente capazes de serem governantes da cidade dramática, que deveria substituir a cidade corrupta do seu tempo. O Reino de Deus, contudo, não tem organização social nem classe dominante neste mundo. Em Mateus 16, Jesus conclui a sua análise da existência com a certeza: "Em verdade, em verdade vos digo: muitos dos que aqui estão não provarão a morte antes de terem visto o Filho do Homem voltar no seu Reino,”[48] (16,28) -uma visão que provavelmente não entusiasma nem os membros da situação nem os revolucionários que se querem estabelecer no seu lugar. Ademais, não é só o futuro da história que se pode perder se não "pensarmos no amanhã" (Mat. 6,34); existe também o risco de perder o seu passado. É certo que o Jesus Mateano não veio para destruir a lei ou os profetas mas para os cumprir (5,17); mas é difícil distinguir entre o cumprimento e a destruição apocaiíptica. Notámos as subtis conversões do malak de Yahweh no precursor de Jesus, bem como do Messias no Filho de Deus; e o Pai Desconhecido de 11,27, a que ninguém conhece excepto o Filho, dificilmente é o Deus bem conhecido que trovejou no Sinai e falou através de Moisés e dos profetas. Será que o Yahweh de Israel também deveria tornar-se um buscador de deus e um mediador tal como os Olímpicos do mito Platónico?
4. Uma vez que estes temas não estavam suficientemente clarificados no movimento do evangelho, tornou-se possível o descarrilamento para o gnosticismo. A força do evangelho reside na sua concentração no ponto que é o mais importante de todos: a verdade da realidade não tem o seu centro no cosmos em geral, nem na natureza ou na sociedade ou no governo imperial, mas na presença do Deus Desconhecido na existência humana, na sua vida e morte. Contudo, esta própria força pode causar uma ruptura se a ênfase no centro da verdade se tornar tão intensa que as suas relações com a realidade de que é centro, sejam negligenciadas ou interrompidas. A menos que o Deus Desconhecido seja a presença divina indiferenciada no horizonte dos deuses específicos intracósmicos, ele é de facto um deus desconhecido pela experiência primária do cosmos. Nesse caso, contudo, não existe processo de revelação na história, nem um movimento milenar que culmina na epifania do Filho de Deus, mas apenas a irrupção de um deus extracósmico num cosmos onde até então permanecera escondido da humanidade. Ademais, uma vez que a revelação deste deus extracósmico é a única verdade que existencialmente importa, o cosmos, os seus deuses e a sua história tornam-se uma realidade afectada pelo índice de inverdade existencial. Em particular, o Yahweh de Israel é imaginado como um demónio mau que criou o cosmos em ordem a satisfazer o seu desejo de poder e a manter o homem, cujo destino é extracósmico, como prisioneiro no mundo da sua criação. Este deus dos gnósticos, decerto que não é o Deus do evangelho que sofre a morte no homem para elevar o homem à vida; mas é um deus que pode emergir do movimento, através de um acto da imaginação, quando a consciência da existência se isola da realidade do cosmos em que se diferenciou. Afirmo intencionalmente que o deus gnóstico pode emergir do movimento em geral, porquanto não está necessariamente acorrentado ao movimento do evangelho como um dos seus descarrilamentos possíveis. Os historiadores da religião que encontram as "origens" do gnosticismo na Hélade ou na Pérsia, na Babilónia ou no Egipto, em religiões de mistérios helenísticos ou movimentos sectários judaicos, e que diagnosticam os elementos gnósticos no próprio Novo Testamento, não estão completamente errados, porque a possibilidade estrutural do descarrilamento está presente, desde que se iniciou o movimento existencial para diferenciar o Deus Desconhecido dos deuses intracósmicos. Contudo, devemos esclarecer que a presença da possibilidade estrutural não é, em si própria, gnosticismo; seria preferível aplicar o termo apenas aos casos em que o isolamento imaginativo da consciência existencial se torna o centro motivador para a construção de simbolismos grandiosos, como sucedeu nos grandes sistemas gnósticos do século 11 d.c. Estes sistemas, embora produtos da imaginação mítica, não são mitos do tipo intracósmico nem são mitos dos filósofos como os de Platão ou de Plotino, nem pertencem ao gênero dos evangelhos do Novo Testamento. Constituem um simbolismo sui generis que exprime um estado de alienação da realidade, mais precisamente caracterizável como um isolamento extracósmico da consciência existencial.
Embora a possibilidade do descarrilamento gnóstico seja inerente ao movimento desde o seu princípio, por a completa diferenciação da verdade da existência na presença,do Deus Desconhecido através do seu Filho, que criou o campo cultural em que a contracção extracósmica da existência se torna uma possibilidade igualmente radical. Juntamente com o evangelho enquanto verdade da realidade, a civilização ocidental herdou a contracção extracósmica como possibilidade do seu desordenamento. Já apontei o padrão cultural dos novos Cristos no final do séc. XVIII e no princípio do séc. XIX que repetem o padrão dos "filhos de deus" que suscitaram a ira de lreneu e de Plotino. Mas de momento não posso ir além deste breve apontamento. Não sabemos que horrores ainda nos estão reservados na fase presente da desordem cultural; mas espero ter mostrado que a filosofia pode ajudar-nos na penetração noética dos seus problemas. Talvez a sua persuasão possa ajudar a restaurar a lei da razão.
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